Descrição de chapéu Folhajus Ásia

Audiências virtuais facilitam mediação de famílias separadas entre o Brasil e o Japão

A mais de 17 mil km de distância, ex-casais vivem limbo jurídico e afetivo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Toyohashi (Japão)

​Foi por uma tela do Microsoft Teams que a paulista Elisabeth Sato, 35, pôs um ponto final no seu casamento no fim de março no Japão.

À distância de mais de 17 mil km de um fórum brasileiro, Sato e o ex-marido conseguiram oficializar o divórcio em uma audiência virtual realizada pelo Cejusc (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania) do Tribunal de Justiça de Jundiaí, no interior de São Paulo.

Funcionária de bar exibe preços do estabelecimento em rua do distrito Akihabara, em Tóquio
Funcionária de bar exibe preços do estabelecimento em rua do distrito Akihabara, em Tóquio - Philip Fong - 3.mai.21/AFP

Sato e o ex, também paulista, namoraram e se uniram no Japão, em 2009, e depois registraram o casamento durante uma visita ao Brasil, em 2013. Eles têm dois filhos, um menino de 8 anos e uma menina de 5.

“O casamento não deu certo, mas a amizade ficou”, diz ela, que trabalha como tradutora e assistente para crianças brasileiras na pré-escola na cidade japonesa de Fukuroi, na província de Shizuoka.

Desde 2020, eles estavam decididos a se separar. Sem a alternativa virtual, precisariam mandar procurações para dois amigos ou advogados representá-los nos trâmites de cartório ou viajar de volta ao Brasil para assinar tudo pessoalmente. “Na pandemia, nada disso era possível.”

Na verdade, já era possível realizar mediações via internet, segundo o artigo 46 da Lei 13.140 e o artigo 236 do Código de Processo Civil. “Entretanto, não era muito comum. Na pandemia, acelerou-se a abertura para sessões virtuais, inclusive internacionais”, diz a juíza Valeria Ferioli Lagrasta, que homologou o acordo do ex-casal, redigido pelo mediador Fernando Nishiyama. O documento vale como uma sentença judicial.

Com a instauração de audiências virtuais a partir de abril de 2020, abriu-se uma janela para a inclusão de quem reside em outros países.

Uma das primeiras sessões online presidida pela juíza Mônica Tucunduva, da Vara da Família de Assis, no interior de São Paulo, foi internacional: uma audiência de conciliação entre uma família no Brasil e o pai no Japão.

Há quase 20 anos morando fora, o pai, brasileiro, viu o filho pela última vez quando ainda era bebê —hoje, ele já é um jovem estudante. No fim, eles fizeram um acordo referente ao pagamento de pensões.

“Foi muito marcante: o pai ficou feliz por ser ouvido pela primeira vez, pois antes disso ele era só representado por procuração. Ele fez questão de estar presente na sessão às 2h no Japão”, conta a juíza, lembrando da diferença de 12 horas entre os dois países por conta do fuso. “Nota-se o alcance da tecnologia para aproximar mundos tão distantes.”

Sato também se surpreendeu com a agilidade da audiência. “Tive sorte. Tudo foi resolvido em questão de uma hora. Foi uma conversa tranquila só para confirmar o que nós já tínhamos discutido sobre guarda, pensão, partilha de bens etc.”, lembra.

Lá Fora

Receba toda quinta um resumo das principais notícias internacionais no seu email

Outras famílias não tiveram tanta sorte e, até hoje, vivem um tipo de limbo jurídico e afetivo entre Brasil e Japão. Elas não tiveram um ponto final.

“Pôr os pingos nos is em situações mal resolvidas é o que querem muitas famílias que se fragmentaram entre os dois países nas últimas décadas”, diz o advogado paulista Etsuo Ishikawa, que assessorou o ex-casal. “É importante oferecer acesso a modalidades simples para resolver conflitos no âmbito pré-processual, como mediação e conciliação.”

Radicado há 30 anos no Japão, Ishikawa presta consultoria para diversas instituições. Das cerca de 700 consultas que ofereceu a brasileiros entre 2018 e 2019 no banco Hamamatsu Iwata Shinkin Bank e nos consulados de Hamamatsu (Shizuoka) e Nagoia (Aichi), a maioria era assunto de família: 26,5% se referiam a divórcio, 12,2% a guarda, 11,6% a pensão alimentícia e 11% a direito de visita aos filhos.

Com o movimento decasségui, o fluxo de descendentes de japoneses que foram trabalhar (a princípio) temporariamente no Japão a partir da década de 1990, o que aconteceu foi que, muitas vezes, um dos cônjuges ficou no Brasil enquanto o outro se instalou de forma definitiva no outro lado do mundo.

Ao longo das décadas seguintes, muitos perderam contato e deixaram tudo para trás. “Um motivo que beira o óbvio talvez seja o principal: a imensa distância geográfica entre Japão e Brasil”, avalia o sociólogo Angelo Ishi, professor da Universidade Musashi, em Tóquio.

Dada a quilometragem, o preço das passagens aéreas era e é alto. “Essa distância induz a duas posturas: primeiro, a tendência de voltar pouco para o Brasil; segundo, a oportunidade de ‘sumir’ no Japão.”

Entre 1995 e 2020, foram expedidas do Brasil ao Japão 7.613 cartas rogatórias (instrumento jurídico para comunicação entre as Justiças de dois países); entre elas, 3.376 eram sobre pensão alimentícia e 1.829 sobre separação e divórcio, segundo dados levantados por Ishikawa junto aos consulados. Nem metade das cartas rogatórias foi cumprida —ao todo, apenas 2.826 chegaram ao destino final.

“Se alguém quiser localizar um familiar no Japão, por exemplo, é um caminho, mas um longo caminho: a carta é redigida e traduzida, passa por um tribunal no Brasil, vai para Brasília, passa pelo Itamaraty, vai para Tóquio, passa por um tribunal no Japão, é então encaminhada pelo correio para a casa do destinatário que, no fim, às vezes ignora a correspondência, que consta como ‘não cumprida’. Nisso, passou-se mais de um ano”, exemplifica Ishikawa.

Nas décadas de 1990 e 2000, muitos brasileiros buscaram localizar amores “perdidos” no Japão por outras vias: eles escreviam cartas para a imprensa voltada a imigrantes no arquipélago. Por muito tempo existiu uma seção intitulada “Procura-se Desaparecidos” no jornal Tudo Bem, publicado em português, em Tóquio.

“Na época, notei que as motivações para as pessoas ‘perderem’ contato eram variadas”, relata Ishi, que foi editor do jornal.

“Um rapaz disse que não aguentava mais atender a pedidos dos pais, que queriam mais e mais remessas de dinheiro. Outro confidenciou que nunca teve coragem de revelar aos pais que era homossexual e tinha conseguido encontrar um parceiro com quem construiu um lar no Japão. E, claro, os casos mais comuns eram os de ‘vida dupla’, de gente que criou um novo lar no Japão, mas não teve a decência de acertar sua situação com quem ficou no Brasil.”

No International Press, também voltado a brasileiros, a seção era a “Desaparecidos”. Também eram mensagens de mães, mulheres, filhos com saudades. A maioria dos desaparecidos era do sexo masculino.

Nos momentos de crise econômica, os pedidos de busca se multiplicaram —“e os ‘desaparecidos’ começaram a ‘aparecer’, só para nós, fazendo ameaças”, conta a jornalista Fátima Kamata, que esteve à frente do jornal entre 1995 e 2004.

Os “procurados” passaram a ligar para a Redação, pedindo a retirada do anúncio, pois não queriam nenhum contato com quem os buscava.

As cartas, lembra a editora, eram principalmente sobre pensão alimentícia, pedidos de divórcio e empréstimos (amigos cobrando o dinheiro emprestado ao decasségui).

Após o fim da seção, o jornal continuou recebendo pedidos de busca, mas passou a encaminhá-los aos consulados de acordo com a jurisdição.

Era de se imaginar que, com a difusão da internet, ficaria mais fácil localizar familiares atualmente. Entretanto, para muitos, apenas a tribuna mudou: em vez de cartas rogatórias e cartas à imprensa, agora há posts no Facebook.

Um deles foi recentemente publicado pela cearense Marcia Viana, 39, que há cerca de 16 anos não tem notícia do companheiro.

A cearense Marcia Viana, 39, que há cerca de 16 anos não tem notícia do companheiro, com o filho, Masayoshi Viana Yano, 18
A cearense Marcia Viana, 39, que há cerca de 16 anos não tem notícia do companheiro, com o filho, Masayoshi Viana Yano, 18 - Arquivo pessoal

Viana conta que conheceu o cônjuge em Belém, onde moraram juntos e tiveram um filho, em 2003. Eles não se casaram no papel, mas às vezes ela se refere a ele até hoje como “meu marido”. Ele foi trabalhar como operário no Japão; ela ficou morando “de favor”, segundo suas palavras, na casa dos pais dele no Brasil.

“Depois que meu marido foi embora, esperei seis meses para receber o primeiro telefonema dele. Ele dizia que ia trabalhar e juntar dinheiro para levar a família toda para lá. Esperei e nunca mais ouvi a voz dele, meu menino nunca mais ouviu a voz do pai.”

Por volta de 2006, os sogros pediram para ela ir embora da casa. “Diziam que eu estava de olho no dinheiro, mas que dinheiro? Vivia na área rural e nem tinha ideia do que era iene. Queria só que meu marido voltasse. Vivo do passado, fico pensando o que fiz de errado, pois ele nunca voltou.”

Viana se instalou em Castanhal do Pará (PA) e depois em Tabuleiro do Norte (CE). Ela conta que conseguiu encontrar o perfil dele duas vezes no Facebook, mas as contas foram desativadas após as tentativas de contato. “Ele é quem devia estar me procurando, né? Não minha mãe procurando ele para lembrar de mim”, diz o filho, Masayoshi Viana Yano, 18.

“Trabalhei de sol a sol para criar meu filho sozinha. Não quero dinheiro dele. Quero que ele ligue para o filho no aniversário, dia 26 de outubro, nas férias, no Natal”, diz ela, que não sabe se o ex continua no Japão ou se voltou ao Brasil. “Se um dia ele quiser ligar, estamos esperando.”

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.