Programa no Reino Unido financia passagens de trens para vítimas escaparem de abuso doméstico

'Trem para o refúgio' foi prorrogado após aumento de casos de violência durante pandemia

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Maya Oppenheim
Reino Unido | The Independent

"Eu tinha 10 libras [R$ 72] em meu nome quando deixei o abusador", disse Ava, cujo nome foi modificado para proteger sua identidade. "Conseguir uma passagem de trem foi o que garantiu minha segurança. Não sabia aonde estava indo, mas logo comecei a ter uma sensação de confiança. As crianças gostaram da velocidade do trem. Era a primeira vez que estavam em um. Agora, sinto que minha vida recomeçou."

Ava é uma de centenas de sobreviventes de abuso doméstico no Reino Unido que ganharam passagens de trem para escapar de seus parceiros abusivos e buscar refúgio num abrigo. O esquema, chamado "Trem para o Refúgio", foi lançado em todo o país em março do ano passado e foi usado amplamente conforme o abuso doméstico disparou após as medidas de restrição adotadas para conter a Covid-19.

Trens chegam a estação em Londres
Trens chegam a estação em Londres - Daniel Leal-Olivas - 20.mai.21/AFP

Dados mostram que 1.348 pessoas usaram o programa, equivalente a quatro sobreviventes de abuso doméstico por dia. O esquema ajudou 362 crianças com mais de 5 anos de idade e deveria ter terminado em março deste ano, mas foi prorrogado. Ava, que trabalhava no Serviço Nacional de Saúde, disse ter sido submetida a abuso físico, emocional, financeiro e sexual nas mãos de seu ex-parceiro.

Desde então, ele foi acusado pela polícia de controle coercitivo e estupro.

"Ele queria sexo todos os dias", disse a mulher de 37 anos. "Se eu não quisesse, ele saía e não voltava durante alguns dias, e eu ficava sem comida para as crianças. Ele queria que eu iniciasse o sexo. Por isso, mesmo que eu estivesse dormindo, eu tinha de acordar."

Ava escapou do abusador em março do ano passado, antes do lockdown provocado pelo coronavírus, com seus dois filhos de um companheiro anterior. Ela contou que o ex-parceiro esperava que ela fizesse toda a limpeza e a proibia de trabalhar. Também disse que não tinha wi-fi porque ele queria isolá-la dos amigos. Ele tinha até câmeras de vigilância diante da casa e a questionava sempre que ela saía para ir a uma loja.

"Ainda tenho pesadelos com ele", acrescentou Ava. "Quando vejo um carro igual ao dele, sinto um medo no fundo da barriga. As crianças ainda estão assustadas. Elas lembram da situação como um pesadelo. Eu sabia que não ficaria viva se continuasse lá."

Charlotte Kneer, executiva-chefe do Refúgio de Mulheres Reigate e Banstead no condado de Surrey
Charlotte Kneer, executiva-chefe do Refúgio de Mulheres Reigate e Banstead no condado de Surrey - Paul Craig

As estatísticas do Reino Unido mostram que as mulheres correm o maior risco de homicídio no momento da separação ou depois de deixarem um parceiro violento: cerca de 55% das mulheres assassinadas por seus ex-companheiros em 2017 foram mortas no primeiro mês de separação, e 87%, no primeiro ano.

A cada quatro dias uma mulher é morta por um parceiro ou ex-parceiro na Inglaterra e em Gales. Uma mulher tenta deixar um parceiro violento em média sete vezes antes de realmente conseguir fugir, com as vítimas de abuso muitas vezes tendo de se mudar para outra parte do país para escapar em segurança.

Enquanto isso, a violência doméstica aumentou durante a pandemia, e um relatório divulgado por parlamentares em abril do ano passado revelou que os assassinatos duplicaram em 21 dias.

Charlotte Kneer, executiva-chefe do Refúgio de Mulheres Reigate e Banstead no condado de Surrey, a uma hora de Londres, para onde Ava fugiu após escapar do ex-parceiro abusivo, disse que o esquema de fornecer passagens de trem grátis salva vidas.

"O programa pode ter salvado a vida de centenas de mulheres. Das que estão em nosso refúgio, 90% corriam risco de assassinato pelo parceiro se continuassem em casa", disse Kneer, uma sobrevivente de abuso doméstico cujo parceiro ficou preso por sete anos a partir de 2011.

"Tudo parece completamente avassalador quando você sofre abuso. Você fica aterrorizada. Outro elemento é o abuso financeiro, muitas vezes presente no abuso doméstico. O programa envia a mensagem para as pessoas que deixam um relacionamento abusivo de que a sociedade em geral, e especificamente a companhia de trens, se importam com você e querem ajudá-la."

Kneer disse que outro benefício do esquema é que ele dá ao pessoal do refúgio a garantia de não ter de "andar por aí" tentando arranjar dinheiro para financiar o transporte das vítimas, o que pode demorar. "O esquema tornou muito mais fácil para as vítimas deixarem um relacionamento abusivo. Ele diminui a pressão sobre as refugiadas que já vêm lutando nos últimos anos devido aos programas de austeridade".

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Kneer comentou que o esquema foi criado por um funcionário da ferrovia que assistiu a um documentário sobre seu refúgio —o filme marcou a primeira vez que uma equipe de TV teve permissão para entrar num refúgio no Reino Unido. "Ele trabalha na [companhia de trens] Southeastern e pensou que era terrível que as mulheres não pudessem chegar a um refúgio", afirmou Kneer. "Ele pensou: podemos fazer algo a respeito? A coisa que mais me tocou foi que isso mostra que uma pessoa pode fazer a diferença, e ele fez. Ele é um cara normal, que faz seu serviço, e não um diretor da companhia."

A iniciativa é um esquema conjunto entre companhias de trens e a principal organização beneficente contra o abuso doméstico, a Women's Aid, que pede às operadoras de trens que paguem o custo das passagens para mulheres, homens e crianças viajarem até o refúgio. Quase dois terços das pessoas que usaram o programa disseram que não teriam conseguido fazer a viagem se o custo não fosse coberto.

Uma em cada três vítimas de abuso doméstico que tentam fugir de seus parceiros foi alvo de abuso financeiro, que inclui o parceiro roubar dinheiro, tentar controlar os gastos ou acumular dívidas em nome da vítima, tornando-a incapaz de escapar do perigo.

Esta reportagem está sendo publicada como parte do projeto "Towards Equality", uma iniciativa internacional e colaborativa que inclui 15 veículos de imprensa para apresentar os desafios e soluções para alcançar a igualdade de gênero.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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