Para reduzir natalidade em Xinjiang, China ataca muçulmanas

Mulheres foram alvo de esterilizações forçadas e vigilância doméstica

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Amy Qin
The New York Times

Quando o governo ordenou que as mulheres de sua comunidade, majoritariamente muçulmana, teriam que receber dispositivos contraceptivos, Qelbinur Sedik pediu para ser isenta da medida. Disse às autoridades em Xinjiang que já tinha quase 50 anos de idade. Havia obedecido os limites de natalidade definidos pelo governo e tido apenas um filho.

Não adiantou. Os funcionários ameaçaram levá-la à polícia se ela continuasse resistindo. Sedik contou que se rendeu e foi a uma clínica do governo onde um médico, usando fórceps metálico, inseriu nela um DIU (dispositivo intrauterino) contraceptivo. Ela chorou enquanto passava pelo procedimento.

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Mesquita em Kashgar, na região de Xinjiang - Bryan Denton - 3.jul.2017/The New York Times

“Senti-me como se tivesse deixado de ser uma mulher normal”, contou Sedik, com a voz embargada, descrevendo o sofrimento que passou em 2017. “Como se alguma coisa estivesse faltando em mim.”

Em boa parte da China as autoridades estão incentivando as mulheres a ter mais filhos, procurando evitar uma crise demográfica prevista devido à queda do índice de natalidade.

Mas em Xinjiang, região do extremo oeste do país, estão forçando as mulheres a ter menos, em um esforço para apertar o cerco em volta das minorias étnicas muçulmanas. Faz parte de uma campanha vasta e repressora de reengenharia social travada por um Partido Comunista determinado a eliminar qualquer coisa que enxergue como desafio a seu domínio —no caso de Xinjiang, o separatismo étnico.

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Nos últimos anos, o partido, sob o comando do líder máximo Xi Jinping, vem tomando medidas agressivas para controlar os uigures e outras minorias centro-asiáticas em Xinjiang, enviando centenas de milhares deles para campos de detenção e prisões. As autoridades impuseram um regime de vigilância rígida na região, enviaram os habitantes para trabalhar em fábricas, e as crianças, para internatos.

Quando se voltam à repressão contra mulheres muçulmanas, as autoridades estão indo ainda mais longe, procurando orquestrar uma transformação demográfica que afetará a população por gerações.

O índice de natalidade já caiu fortemente na região nos últimos anos com o uso de procedimentos invasivos de controle de natalidade, fatos previamente documentados por um pesquisador, Adrian Zenz, trabalhando com a agência Associated Press.

As autoridades têm dito que os procedimentos são voluntários, mas entrevistas com mais de uma dúzia de uigures, cazaques e outros muçulmanos de Xinjiang, mulheres e homens, além de uma análise de estatísticas oficiais, avisos divulgados pelo governo e relatos publicados na mídia estatal, revelam um esforço coercivo do Partido Comunista chinês para controlar os direitos reprodutivos da comunidade.

As autoridades pressionaram mulheres a usar DIU ou ser esterilizadas. Quando elas se recuperavam em casa, funcionários do governo foram enviados para viver com elas para observar possíveis sinais de insatisfação. Uma mulher descreveu como teve que suportar ser apalpada pelo funcionário do governo.

Se elas tivessem tido filhos demais ou recusado procedimentos contraceptivos, tinham que pagar multas pesadas ou, ainda pior, ser detidas em campos de internação. Nos campos, corriam risco de sofrer mais abusos. Algumas ex-detidas nesses campos contaram que foram forçadas a tomar remédios que interromperam seus ciclos menstruais. Uma mulher disse que foi estuprada num campo de internamento.

Para defensores dos direitos humanos e autoridades ocidentais, a repressão movida pelo governo chinês em Xinjiang equivale a crimes contra a humanidade e genocídio, em grande medida devido aos esforços para frear o crescimento demográfico das minorias muçulmanas. A administração Trump, em janeiro, foi o primeiro governo a declarar a repressão como um genocídio, sendo a opressão reprodutiva a razão principal. A administração Biden reafirmou a qualificação em março.

Noticiado no Guardian e em outras publicações, o depoimento de Sedik ajudou a fundamentar a decisão americana. “Foi um dos depoimentos em primeira pessoa mais detalhados e convincentes que tínhamos ouvido”, disse Kelley E. Currie, ex-embaixadora dos EUA que participou das discussões do governo. “O relato dela ajudou a conferir uma cara humana às estatísticas pavorosas que estávamos vendo.”

Pequim, por sua vez, acusa seus críticos de promover uma agenda anti-China. O governo chinês diz que o declínio recente no índice de natalidade na região decorre da implementação plena de restrições à natalidade vigentes de longa data. As esterilizações e os procedimentos contraceptivos, afirmou, libertam as mulheres de atitudes retrógradas em relação à reprodução e religião.

“O uso de métodos anticoncepcionais e o método escolhido são determinados inteiramente pelo livre arbítrio das mulheres”, disse um porta-voz do governo, Xu Guixiang, em entrevista coletiva em março. “Ninguém e nenhum órgão vai interferir.”

'Perdi toda a esperança'

Qelbinur Sedik, de etnia uzbeque, sempre se enxergou como cidadã modelo. Após se formar, ela se casou e se dedicou ao trabalho, ensinando a língua chinesa a alunos uigures do ensino primário. Atenta às regras, esperou pela permissão de seu empregador para engravidar. Ela teve uma filha apenas, em 1993.

Sedik poderia ter tido dois filhos. As regras da época autorizavam membros de minorias étnicas a ter famílias um pouco maiores que as do grupo étnico majoritário chinês, os hans, especialmente na zona rural. O governo chegou a dar um atestado de honra a Sedik por ater-se aos limites.

Mas tudo mudou em 2017. Ao mesmo tempo em que o governo encurralou uigures e cazaques em campos de internamento em massa, endureceu a implementação dos controles de natalidade. Entre 2015 e 2018, o índice de esterilizações em Xinjiang se multiplicou por quase seis, chegando a pouco mais de 60 mil procedimentos. Ao mesmo tempo, segundo cálculos de Zenz, as esterilizações diminuíram radicalmente no resto do país.

A campanha travada em Xinjiang destoa de um esforço mais amplo movido pelo governo desde 2015 para incentivar a natalidade, incluindo a oferta de estímulos fiscais e a remoção gratuita de DIUs. Mas entre 2015 e 2018, as novas inserções de DIUs aumentaram em Xinjiang, ao mesmo tempo em que os dispositivos eram cada vez menos usados em todo o país.

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Dormitório para mulheres em centro de reeducação para uigures em Hotan, Xinjiang, em agosto de 2019 - Gilles Sabrié/The New York Times

A campanha de contracepção parece ter funcionado. Segundo os cálculos de Zenz, o índice de natalidade nos condados da região povoados principalmente por minorias étnicas caiu fortemente entre 2015 e 2018. Vários desses condados deixaram de divulgar dados demográficos, mas Zenz calculou que em 2019 o índice de natalidade nas áreas minoritárias continuou a diminuir, caindo pouco mais de 50% em relação a 2018. A julgar pelo que diz Pequim, a campanha é uma vitória para as mulheres muçulmanas da região.

“O processo de desradicalização também levou à libertação de algumas mentes femininas”, diz um relatório de janeiro de um centro de pesquisas em Xinjiang. “As mulheres evitaram o sofrimento de ser aprisionadas pelo extremismo e convertidas em ferramentas reprodutivas.”

Mulheres como Sedik, que haviam obedecido as regras, não foram poupadas. Depois da inserção do DIU, ela sofreu hemorragias fortes e dores de cabeça. Mais tarde, removeu o dispositivo em segredo, mas depois o reinseriu. Em 2019, decidiu se esterilizar. “O governo se tornara tão rígido, e eu não aguentava mais o DIU”, contou Sedik, que fugiu da China em 2019 e hoje vive na Holanda. “Perdi toda a esperança.”

'As mulheres de Xinjiang correm perigo'

As penalidades para quem desobedece o governo são pesadas. Uma chinesa da etnia han que infringisse os regulamentos de natalidade seria multada, mas uma mulher uigur ou cazaque que o fizesse correria o risco de ser detida. Quando Gulnar Omirzakh teve seu terceiro filho, em 2015, as autoridades de seu vilarejo registraram o nascimento. Três anos mais tarde, porém, lhe disseram que ela violara o limite do número de filhos e estava devendo US$ 2.700 em multas.

Se Omirzakh não pagasse as multas, disseram, ela e suas duas filhas seriam detidas. Ela pegou emprestado dinheiro de seus parentes. Mais tarde, fugiu para o Cazaquistão. “As mulheres de Xinjiang correm perigo”, disse ela em entrevista por telefone. “O governo quer substituir nosso povo.”

A ameaça de detenção era real. Três mulheres disseram ao New York Times que conheceram outras detentas em campos de internamento que tinham sido detidas por violarem as restrições à natalidade.

Os relatos das ex-detentas não puderam ser checados por uma fonte independente porque as restrições rígidas em Xinjiang impossibilitam o acesso livre aos campos de internamento. O governo chinês rejeita terminantemente todas as alegações de abusos nos campos. “Ataques sexuais e tortura não podem existir”, disse Xu, o porta-voz regional, em um encontro com a imprensa em fevereiro.

Ao mesmo tempo em que alega defender os direitos das mulheres, Pequim procura questionar a credibilidade das mulheres que vieram a público fazer denúncias, acusando-as de mentir e de imoralidade.

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Zumret Dawut em Woodbridge, nos EUA, onde vive atualmente; ela foi esterilizada à força em Xinjiang - Gabriella Demczuk/The New York Times

'Somos todos chineses'

Nem sequer em casa as mulheres se sentiam em segurança. Representantes do Partido Comunista chinês compareciam às suas casas sem ser convidados, e elas eram obrigadas a deixá-los entrar.

Como parte de uma campanha intitulada “Formem Duplas e Virem Famílias”, o partido enviou mais de 1 milhão de funcionários para fazer visitas regulares a residências de muçulmanos, às vezes para hospedar-se com eles. Para muitos uigures, esses representantes não passam de espiões.

Os representantes tinham que informar às autoridades se as famílias que visitavam revelavam sinais de “comportamento extremista”. No caso de mulheres, isso incluía qualquer ressentimento que pudessem ter sentido por serem sujeitas aos procedimentos contraceptivos impostos pelo Estado.

Quando os representantes partidários vieram à sua casa, em 2018, Zumret Dawut acabava de ser esterilizada à força. Quatro representantes hans a visitaram em Urumqi, recordou ela, levando iogurte e ovos para ajudá-la na recuperação. E vieram armados também com perguntas: ela tinha alguma queixa a fazer sobre a operação de esterilização? Estava insatisfeita com a política do governo?

“Tive muito medo de me mandarem de volta aos campos se eu dissesse algo errado”, contou Dawut, mãe de três filhos. “Então falei: ‘Somos todos chineses e temos que fazer o que manda a lei chinesa’."

Tradução de Clara Allain

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