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Reação à disposição de papa para coibir abuso sexual vai de decepção a otimismo

Vaticano mudou recentemente suas leis internas sobre punição de sacerdotes abusadores

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São Paulo

Nesta semana, o Vaticano mudou suas leis internas para forçar seus bispos a punir para valer sacerdotes reconhecidamente abusadores.

Não dá para falar dessa guinada de postura sem voltar a Fernando Karadima, padre chileno que se relacionou com crianças e adolescentes ajudado pelo silêncio cúmplice de pares. A primeira suspeita é de 1955.

Um dos rapazes que anos mais tarde o denunciou, o hoje cirurgião gástrico James Hamilton, conta que após os ataques sexuais o pároco o mandava ir se confessar com outro clérigo, que lhe dizia apenas: "Seja paciente, não se preocupe".

Hamilton não foi paciente, se preocupou, foi a público com o caso, e Karadima virou símbolo da leniência do Vaticano com predadores sexuais de batina. É o seu exemplo que muitos evocam para argumentar que o papa Francisco pode até ter avançado alguns passos para abater a cultura que preferia calar a combater assédios cometidos por sacerdotes. Mas fez o bastante?

No caso chileno, definitivamente não, e o próprio Francisco sabe disso, diz o vaticanista Filipe Domingues, doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. "Ele mesmo reconhece que foi o ponto mais baixo do seu pontificado."

Papa Francisco celebra missa na Basílica de São Pedro, no Vaticano - Remo Casilli - 16.mai.2021/AFP

A reação papal foi pôr em xeque a palavra de vítimas como Hamilton. A Igreja Católica silenciou por anos sobre as denúncias. Quando o pontífice visitou o Chile em 2018, irritou-se com perguntas de jornalistas sobre Juan Barros, bispo acusado de acobertar seu mentor, Karadima. "Não há uma única prova contra [Barros]. Tudo é calúnia.”

Francisco se desculpou, e no ano seguinte a Santa Sé promoveu um encontro com 114 presidentes de Conferências Episcopais (instituições como a brasileira CNBB) para discutir a proteção de menores.

Seja por “negação” ou por “cumplicidade criminosa, maliciosa”, o silêncio não era mais uma alternativa, afirmou à época o arcebispo de Malta, Charles Scicluna, um tipo 007 enviado pelo Vaticano para investigar episódios como o do Chile.

Na terça (1º), a Santa Sé divulgou uma aguardada revisão de sua lei canônica. Uma das mudanças mais pertinentes alterou o tratamento dado a crimes sexuais.

Segundo a lei da Igreja Católica, abusar de menores ou de adultos vulneráveis e usar as posições de autoridade para forçar atos sexuais não é mais um mero atentado à castidade: é crime contra a dignidade humana, e a punição deve ser dura.

O que nos traz de volta à questão: o papa vem se empenhando para coibir uma praga que por décadas carcomeu a estrutura da igreja?

O grau de otimismo vai depender do interlocutor. O de Anne Barrett Doyle não é muito alto.

"Para os católicos que desejam uma igreja honesta, Francisco tem sido uma decepção", diz a codiretora da Bishop Accountability, ONG que documenta escândalos sexuais protagonizados pelo clero.

"Esperávamos que ele fosse um reformador, porque suas palavras nos deram esperança. Ele foi o primeiro papa a dizer que os bispos devem ser responsabilizados, e ele jurou ‘nunca mais’ à cultura do encobrimento."

Teoria e prática, contudo, foram cada uma para um lado, segundo Doyle. "Seu processo de investigação e punição de bispos problemáticos é secreto do início ao fim. Exige que cada tomador de decisão esteja no nível de bispo ou superior. Nenhum sacerdote, e certamente nenhum leigo, está autorizado a ter um papel de autoridade no julgamento de um bispo acusado."

Há exemplos bissextos de sanções severas contra membros do alto clero acusados de encobrir ou praticar abusos. O ex-arcebispo de Washington Theodore McCarrick é um deles: foi expulso pelo papa em 2019, considerado culpado de ter "infringido o sexto mandamento [que proíbe o adultério] com menores e adultos, com a circunstância agravante do abuso de poder".

Para Doyle, ainda é pouco. "Fora McCarrick, nenhum bispo foi denunciado publicamente. Francisco destituiu alguns bispos ruins do cargo, mas suas punições foram moderadas."

Ela também prega uma "transparência radical", e uma que seja definida pelas vítimas, e não pelos opressores. "Para a cura, os líderes da igreja devem entregar o poder não apenas por meio de mudanças estruturais, mas por meio da divulgação de informações."

Isso incluiria uma ordem papal para que a Congregação para a Doutrina da Fé, órgão da cúria romana, liberasse nomes e arquivos dos cerca de 4.000 clérigos que a igreja considerou culpados de abuso sexual infantil. "O papa poderia ser responsável por seu próprio registro de negligência na Argentina", diz Doyle.

Jorge Mario Bergoglio foi arcebispo de Buenos Aires de 1998 a 2013. Durante esses anos, ele "não divulgou nenhum documento, nenhum nome dos padres acusados, nenhuma contagem dos padres acusados, nenhuma política para lidar com os abusos, nem mesmo um pedido de desculpas às vítimas", diz o capítulo com seu nome no site da Bishop Accountability (prestação de contas dos bispos).

Autoridades eclesiais nos EUA e na Europa, e até mesmo os papas João Paulo 2º e Bento 16, tateavam no período uma abordagem sobre a violência sexual contra menores. Havia, portanto, abertura para tal.

Outra lembrança: Francisco teve como braço direito o cardeal George Pell. O ex-tesoureiro do Vaticano chegou a ser condenado a seis anos de prisão por duas instâncias da Justiça australiana.

Em 2020, a mais alta corte do país, no entanto, anulou a sentença dada a Pell pela acusação de abusar de dois integrantes, de 12 e 13 anos, do coral de uma catedral.

Pell ficou mais de um ano preso e escreveu, da carceragem, um livro em que aponta como motivo para sua condenação "meu conservadorismo social e a defesa da ética judaico-cristã exacerbaram a hostilidade popular, principalmente entre os militantes laicos".

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Já no começo de seu pontificado, Francisco se preocupou com o tema, diz o vaticanista Filipe Domingues. Um ano após assumir a cabeceira da igreja, criou a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores.

Indicou como integrante Marie Collins, que tinha 13 anos quando um capelão a estuprou e tirou fotos dela, que estava internada num hospital. “Ele me falou que era padre, não fazia nada de errado. Sabe, eu era uma criança dos anos 1950. Acreditei nele”, Collins, 74, rememorou em 2017.

Três anos depois, a septuagenária deixou o grupo reclamando de recursos de menos e resistência cultural de mais para implementar mudanças profundas na igreja.

"Recentemente, foi nomeado para a comissão um sobrevivente do Chile que é homossexual", lembra Domingues. Juan Carlos Cruz foi uma das vítimas do padre Karadima.

Fora a questão estrutural, que são os mecanismos que a Santa Sé dispõe para acabar com os abusos, há também a cultural, afirma Domingues. Define-a assim: "Entender que [o crime], quando acontece na igreja, é muito mais traumático, porque é um ambiente que deveria ser seguro. É onde as pessoas chegam frágeis, e o que [os sacerdotes] fazem é usar dessa fragilidade para abusar delas."

Para o vaticanista, o papado de Francisco não ignora nenhum desses pontos.

Em 2020, sob sua tutela, o Vaticano publicou uma espécie de manual "que pretende tomar pela mão e conduzir passo a passo" aqueles que precisem "traduzir em ações concretas a normativa canônica relativa aos casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos".

São instruções diretas, como reconhecer com precisão os delitos que mancharam a reputação da igreja: "Relações sexuais (com e sem consentimento), contato físico de ordem sexual, exibicionismo, masturbação, produção de pornografia, indução à prostituição, conversas e/ou propostas de caráter sexual inclusive através dos meios de comunicação".

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