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Em livro, vaticanista disseca visão do papa para 'reconstrução dos escombros da Covid'

Jornalista Domenico Agasso publica obra baseada em conversas com Francisco durante pandemia

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Edison Veiga
Bled (Eslovênia)

Poucos dias após a Organização Mundial da Saúde declarar que a maneira como o coronavírus se alastrava pelo mundo já configurava uma pandemia, o vaticanista italiano Domenico Agasso, repórter do jornal La Stampa e coordenador do site Vatican Insider, telefonou para o papa Francisco.

Do outro lado da linha, o pontífice tentou tranquilizá-lo. “Aqui choramos e sofremos. Todos. Toda a humanidade está sofrendo, e só podemos sair desta situação com a humanidade unida.”

O vaticanista Domenico Agasso, autor de 'Deus e o Mundo Que Virá', encontra o papa Francisco no Vaticano
O vaticanista Domenico Agasso, autor de 'Deus e o Mundo que Virá', encontra o papa Francisco no Vaticano - Divulgação

A entrevista foi publicada em 20 de março de 2020. De lá para cá, não foram poucas as mensagens, documentos e manifestações públicas em que Francisco procurou traçar os pilares para a reconstrução do mundo, recorrendo a fundamentos da doutrina social da Igreja Católica e buscando meios de conciliar, ao menos na teoria, justiça social, preservação ambiental e dignidade a todos.

Ao longo deste período, Agasso manteve recorrentes diálogos com o papa. “Pensamos em um livro a ser publicado mais tarde, sem nos determos muito no dramático tempo presente, vislumbrando o horizonte além da tempestade sanitária, tentando deixar uma contribuição para a reconstrução dos escombros da Covid acumulados nas ruínas causadas por injustiças e desigualdades”, diz o vaticanista à Folha.

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O resultado dessas conversas, em alguns encontros pessoais e várias ligações telefônicas, está no livro “Deus e o Mundo que Virá” (editora Planeta). Agasso, formado em ciências políticas, é autor de outras obras sobre o catolicismo, entre as quais “Conselhos de um Papa Amigo: Palavras do Papa Francisco que Ajudam a Viver Melhor” e “Paulo VI: O Santo da Modernidade”. A atuação como vaticanista vem de família. Seu avô, de quem herdou o nome, foi um dos pioneiros na cobertura papal: acompanhou Paulo 6º (1897-1978), o primeiro papa a viajar de avião, em suas excursões. Ele morreu em janeiro, aos 99 anos.

A pandemia obrigou Francisco a viver em reclusão em 2020. Como isso o afetou? Nos dias mais trágicos da Covid, no ano passado, ele recitou o Angelus e fez a audiência geral a partir da biblioteca do Palácio Apostólico. Disse que estava enjaulado. Um ano depois, no avião ao voltar de Bagdá, em março, contou que ir ao Iraque foi como tornar a viver. Mas não vi desânimo no papa. Ao contrário, parece mais entusiasmado e forte para avançar nos trabalhos pastorais de proximidade ao povo.

No livro, Francisco fala sobre a importância dos “anticorpos da solidariedade”. Não é a única analogia que ele faz com o vírus. Qual a chave para compreender essas mensagens? O papa Francisco nos convida a lutar contra o vírus da indiferença e do egoísmo que colocou o planeta a poucos passos da devastação. E nos exorta a recomeçar a partir de uma consciência que não pode mais ser negada: “Tanto no bem quanto no mal, as consequências de nossas ações sempre recaem também sobre o próximo”.

Portanto, só a generosidade entre os homens é o caminho para uma renovada convivência no bem. Porque, recorda o papa, “a vida é estarmos sempre juntos”, por isso a solidariedade e a fraternidade são essenciais. Pensar em progredir sozinho é ilusório: o individualismo nos faz desmoronar. Em vez disso, afirma o pontífice, “se cuidarmos uns dos outros, todos poderemos viver melhor”.

A crise econômica decorrente da pandemia tornou a chamada “economia de Francisco” mais urgente? A árdua conjuntura econômica está ligada à finalidade dos investimentos financeiros. A esperança é a de que visem ao bem comum, à ética social e à proteção ambiental. O papa indica os quatro critérios para a escolha das empresas a apoiar: a inclusão dos excluídos, a promoção das minorias, a preocupação com o bem comum e o cuidado com a criação. Francisco clama que é preciso tirar do mundo financeiro a “mentalidade especulativa dominante”, restaurando-o “com alma”, segundo critérios de justiça, para reduzir e eliminar concretamente as desigualdades. Para o pontífice, é necessário um espírito de comunhão que permita a criação de modelos econômicos inclusivos, ecológicos e sustentáveis.

Apesar dos gestos repletos de mensagens, Francisco apareceu diversas vezes, mesmo antes das vacinas, sem máscara. Não é um contrassenso? Nos dias mais sombrios da pandemia, em março e abril de 2020, Francisco sempre esteve rodeado por um cordão anticontágio, podendo assim trabalhar e realizar seu trabalho de proximidade, consolo e ânimo às pessoas traumatizadas pela pandemia. Antes da vacina, que ele recebeu em janeiro, às vezes não usava máscara… Mas sempre se mantinha a uma distância segura das pessoas que encontrava, podendo expressar sua energia, seu carinho e incentivo também por meio de seu rosto e do seu sorriso. Mas houve muitas ocasiões em que a máscara foi utilizada.

Como o senhor analisa a postura de Francisco frente aos avanços extremistas, em particular dos negacionistas? Ele não se deixa influenciar. [Francisco] lê tudo, escuta todos e se esforça para chegar a uma síntese, seguindo a linha traçada, sem se preocupar muito com extremistas. O papa espera e prega compromissos e responsabilidades comuns, compartilhados entre todas as partes: políticos, empresários, trabalhadores, líderes sociais, cidadãos comuns, famílias, líderes religiosos… Para Francisco, todos deveriam se sentar à mesma mesa, prontos para diálogos proativos, compartilhando ideias e projetos, livres de interesses pessoais e isentos de campanhas caluniosas.

Mas mesmo dentro da Igreja Católica há uma linha conservadora que se posicionou contra as vacinas, devido ao fato de que linhagens de células utilizadas para desenvolver os imunizantes originalmente vieram de embriões humanos. De que forma Francisco se coloca como uma voz em defesa da ciência, ao mesmo tempo em que se opõe aos fundamentalistas católicos? O papa reiterou, em vários apelos, que é necessário garantir o acesso universal à vacina e a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual. O papa recupera uma aliança eclesiástica entre a Igreja Católica e o cuidado preventivo para evitar epidemias. Conforme lembrou o site da Santa Sé, em 1822 [o cientista inglês que inventou a vacina contra a varíola] Edward Jenner, o pai da imunização moderna, ainda estava vivo quando uma campanha de vacinação em massa foi realizada no Estado Papal então liderado por Pio 7º.

E para quem tinha dúvidas sobre o aspecto ético e cristão do imunizante, Francisco aprovou uma nota da Congregação para a Doutrina da Fé que deu luz verde às vacinas produzidas a partir de linhagens celulares de dois fetos abortados na década de 1960. O documento diz que é “moralmente aceitável” [fazer uso do imunizante], alegando que nesta época de pandemia “todas as vacinas reconhecidas como clinicamente seguras e eficazes podem ser utilizadas com a certeza de que elas não significam cooperação formal com o aborto do qual derivam as células com as quais as vacinas foram produzidas”. Ao mesmo tempo, o papa geralmente acredita que a ciência, assim como as novas tecnologias, deve estar à serviço da humanidade, e nunca como uma ameaça.

Qual é a grande mensagem de Francisco para este momento? [Ele anuncia] os pilares sobre os quais devem ser reconstruídas as sociedades devastadas pela epidemia: esperança, ecologia e solidariedade. Chama para um modelo de desenvolvimento sustentável. Encoraja os jovens para que, mesmo nestes tempos difíceis, continuem a lutar pela realização de seus sonhos. Com uma certeza, sobretudo: mesmo que haja períodos em que Deus parece ter nos abandonado, na realidade “Deus está conosco, está perto de nós e, no momento oportuno, estenderá a mão para nos salvar”.


Raio-x

Domenico Agasso
Formado em ciências políticas, é autor de outras obras sobre o catolicismo, entre as quais 'Conselhos de um Papa Amigo: Palavras do Papa Francisco que Ajudam a Viver Melhor' e 'Paulo VI: O Santo da Modernidade'

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