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Simon Kuper

A pandemia é um presságio da crise climática

Destruição da Amazônia é variante delta do clima, pois quando a floresta encolhe, países ricos esquentam

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Simon Kuper
Financial Times

Quando a Inglaterra abandonar quase todas as restrições da Covid-19, em 19 de julho, não será o fim da pandemia. Talvez não seja nem o começo do fim. Mas é uma espécie de sugestão do fim. Um dia, os países ricos vão sair da Covid-19, enquanto os pobres continuarão atolados nela. E esse não é o cenário só para a pandemia. Provavelmente, é também uma previsão da crise climática.

As duas crises nos dominaram de maneiras parecidas, comenta o epidemiologista canadense David Fisman, membro da Mesa Assessora para Ciência da Covid-19 em Ontário. Há um crescimento exponencial (em infecções, em emissões de carbono), mas inicialmente sem danos visíveis. A vida continua alegremente, durante semanas no caso da Covid, décadas para o carbono. Quando finalmente agimos, já estamos atrasados.

Pessoas passeiam à beira do rio Tâmisa, em Londres, na última sexta (16)
Pessoas passeiam à beira do rio Tâmisa, em Londres, na última sexta (16) - Tolga Akmen/AFP

Então cada país decide quase totalmente por si só o que fazer. Deve fechar as escolas, construir fazendas eólicas? Os problemas globais exigem cooperação global, mas "governo global" se tornou um palavrão político, como "ajuda estrangeira" ou "tecnocracia".

Os conselhos de especialistas não tocam os líderes ignorantes e estressados que temem as manchetes do dia. Enquanto isso, narrativas de desinformação —"É só uma gripe!", "O clima está sempre mudando!"—continuam enganando uma grande minoria, enquanto a crise ataca. Muitas pessoas aceitam hoje entregar suas vidas à guerra cultural: em alguns países ricos, as mortes por Covid-19 se concentram em pessoas contrárias à vacinação.

Somos uma espécie criativa, e numa emergência as pessoas e lugares ricos se salvarão, por meio de soluções técnicas e outras. Não há vacina para a mudança climática, mas quando as inundações se agravarem Nova York e Londres irão reforçar suas barreiras protetoras.

Os americanos começarão a deixar a Califórnia seca e a Miami condenada por regiões mais frias, assim como seus ancestrais foram para o oeste. De maneira mais drástica, os holandeses poderão acabar abandonando amplamente seu país baixo. A piada entre especialistas hídricos da Holanda é: "Vamos todos mudar para a Alemanha e aprender alemão".

Felizmente para os holandeses, isso não é impossível. Mas os países pobres não têm os meios para escapar da mudança climática ou da Covid-19. "Os países de alta renda aplicaram quase 44% das doses mundiais [de vacinas]. Os de baixa renda, apenas 0,4%", disse o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em junho. De modo frustrante, acrescentou ele, as estatísticas não tinham mudado em meses.

Então a Covid-19 está se tornando um problema do mundo pobre. A Inglaterra comemora o "Dia da Liberdade", os países ricos estão vacinando adolescentes e Israel oferece terceiras doses para as pessoas com sistemas imunes fracos. Enquanto isso, em Bangladesh, o exército patrulha as ruas para impor o último lockdown, enquanto crianças perderam 15 meses de aulas. O governo da Tunísia diz que seu sistema de saúde "entrou em colapso" com uma nova onda de infecções.

Pacientes recebem tratamento para Covid-19 no hospital Charles Nicole, em Túnis, na Tunísia
Pacientes recebem tratamento para Covid-19 no hospital Charles Nicole, em Túnis, na Tunísia - Jihed Abidellaoui/Reuters

No início de junho, a Covid-19 já parecia ter matado mais pessoas em todo o mundo do que no ano de 2020 inteiro. Mas a morte de pobres não é novidade. Na prática, o valor de uma vida humana depende de sua nacionalidade.

Essa é uma repetição da crise do HIV. Quando novas drogas começaram a salvar ocidentais ricos nos anos 1990, o Ocidente seguiu em frente, enquanto os africanos continuaram morrendo. O número global de óbitos por HIV hoje é aproximadamente 32 milhões.

Com a Covid-19, muitas ONGs estão dizendo com razão que não é do interesse do mundo rico ajudar a vacinar os pobres. A delta não será a última variante do vírus que desafia a vacina, surgida em um país pobre e que ataca os ricos. Ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo, é o mantra.

O mesmo vale para o meio ambiente: a destruição da Amazônia é a variante delta do clima. Quando a floresta tropical brasileira encolhe, os países ricos também esquentam.

O mundo rico faz hoje tentativas brandas de salvar a Amazônia e enviar vacinas para os países pobres. Mas seu plano A é mais simples: salvar a nós mesmos e depois isolar os pobres. Viajar para a Fortaleza Europa vindo dos países da lista vermelha, na maioria pobres, é quase impossível a não ser para os muito ricos. A Grã-Bretanha considerou deportar solicitantes de asilo para Ruanda.

É brutal, mas é como a democracia das nações-estados foi feita para funcionar: os políticos se preocupam com seus próprios eleitores. É por isso que a Grã-Bretanha cortou a ajuda estrangeira no ano em que a pobreza global aumentou pela primeira vez desde 1998. A Covid-19 alimentou a autopiedade do mundo rico.

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Tudo isso é uma previsão da crise climática, quando os países pobres destruídos pela desertificação ou a elevação do oceano ficarão isolados —riscados do mapa global, na verdade. Tudo o que queremos deles são as matérias-primas. O modelo é o relacionamento que os países ricos têm com a República Democrática do Congo: ela é valorizada quase unicamente como fornecedora de minérios, como o cobalto que nos permite acionar equipamentos e carros elétricos.​

Se a única esperança hoje é um despertar moral, então não há esperança. Com base no que aprendemos com a Covid-19, nossa melhor chance de evitar a catástrofe climática é uma solução técnica desenvolvida em um país rico em seu próprio interesse, que salvaria o mundo por um custo adicional modesto. Disseram-me que sugar o carbono da atmosfera na escala necessária talvez não seja totalmente impossível.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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