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Erros de agência reguladora levaram a acidente de trem em Taiwan que matou 49 pessoas

Trem colidiu com caminhão que havia despencado sobre ferrovia, deixando mais de 200 feridos

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Amy Qin Amy Chang Chien Steven Lee Myers
Taipé | The New York Times

No início pareceu um acidente maluco. Um empreiteiro fazia uma curva fechada com seu caminhão em uma estrada de areia. Ele tinha sido contratado para reforçar uma encosta íngreme na costa leste de Taiwan —qualquer detrito que caísse poderia ser um problema de segurança para os trens que corriam abaixo.

Na borda do barranco, seu caminhão atolou. Ele e outro trabalhador tentaram libertá-lo usando uma faixa de tecido e uma escavadeira. A faixa arrebentou e o caminhão despencou pelo morro sobre a ferrovia.
Cerca de um minuto depois, o Taroko Express nº 408 colidiu com o caminhão, matando 49 pessoas e deixando mais de 200 feridas.

Em um instante, a montanha pitoresca à beira do oceano se tornou o local do mais mortífero desastre ferroviário de Taiwan em sete décadas.

A tragédia naquela manhã de abril é uma das várias crises que abalaram a democracia desta ilha de 23,5 milhões de habitantes, que se orgulha de ser uma sociedade responsável e bem administrada. Ele minou a confiança no governo em um momento em que Taiwan lutava com um surto de casos de coronavírus e seguidos blecautes elétricos.

Trabalhadores checam o vagão danificado do trem envolvido no acidente nas montanhas de Hualien, em Taiwan
Trabalhadores checam o vagão danificado do trem envolvido no acidente nas montanhas de Hualien, em Taiwan - Sam Yeh - 6.abr.21/AFP

Embora a promotoria tenha acusado o empreiteiro, Lee Yi-hsiang, e outros de homicídio culposo, as raízes do desastre são muito mais profundas, revelando falhas sistêmicas no órgão do governo que dirige o sistema de trens, a Administração Ferroviária de Taiwan.

Um exame detalhado do acidente pelo The New York Times, com base em entrevistas com autoridades atuais e passadas, empregados da ferrovia, empreiteiras e especialistas em segurança, descobriu que a agência sofria de uma cultura de complacência e fraca supervisão.

Empreiteiros como Lee eram mal administrados, os problemas de manutenção eram frequentes e as autoridades não viam ou ignoravam as advertências de segurança, criando condições que contribuíram para o acidente.

Um assessor do governo disse a autoridades em 2017 que a linha em que ocorreu o choque era um acidente esperando para acontecer. No início deste ano, um trabalhador local da agência avisou duas vezes sobre o risco de equipamento pesado manobrar na mesma curva. Ninguém fez nada. As autoridades estão investigando se a agência deveria ter feito mais na sequência, disse ao Times um promotor do caso, Chou Fang-yi.

Lee não deveria ter sido contratado para o trabalho, segundo as diretrizes do órgão. Segundo a acusação, ele apresentou ilegalmente sua empresa na licitação, usando as credenciais de uma companhia maior e mais experiente para se qualificar para o projeto. A agência não fez a diligência devida suficiente para revelar o problema. "Esse acidente poderia ter sido evitado", disse em entrevista Li Kang, membro do Conselho de Segurança no Transporte de Taiwan, órgão do governo que investiga o acidente.

Desde o desastre, o presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, prometeu abordar antigas queixas sobre o órgão de Administração das Ferrovias de Taiwan, que oferecia mais de 500 mil viagens por dia antes da pandemia. Um relatório do Ministério do Transporte de Taiwan divulgado no domingo (18) citou falhas nos processos de segurança da agência e na administração de projetos de obras.

O órgão das ferrovias disse que está implementando reformas. Em maio, ele repreendeu 12 empregados por "supervisão e administração inadequada" do projeto no local do acidente, mas nenhum foi demitido.

Em uma resposta por escrito a perguntas, a agência disse que as reprimendas foram "uma advertência e uma oportunidade de os funcionários públicos refletirem sobre suas falhas no cumprimento dos deveres".

Antigas promessas de melhora tiveram pouco resultado. O governo de Tsai pediu reformas em 2018 depois de um acidente de trem no nordeste que matou 18 pessoas. Embora tenham sido instituídas algumas recomendações, mudanças estruturais não o foram.

Desde 2012, os trens da agência sofreram 216 grandes acidentes, incluindo colisões e descarrilamentos, segundo uma análise do Times de dados do Ministério dos Transportes de Taiwan. Os acidentes mataram 437 pessoas. Em comparação, a Ferrovia de Alta Velocidade de Taiwan, o sistema mais novo na costa oeste da ilha, não teve graves acidentes durante o mesmo período.

"Geralmente, quando há um acidente, a reação do TRA é realizar uma reunião, discutir, organizar uma palestra e um exercício e dizer aos trabalhadores que esse é o protocolo correto", disse Lu Chieh-shen, que trabalhou na agência durante 38 anos e serviu como diretor-geral de 2016 a 2018. "Depois eles voltam para sua rotina."

Colisão fatal

Na manhã de 2 de abril, Lee não deveria estar trabalhando. Era o Dia de Varrer Túmulos, feriado em que as pessoas homenageiam seus ancestrais. Mas ele estava atrasado e não queria ser multado por perder o prazo, segundo a promotoria. Ele contratou vários outros trabalhadores, mas não havia supervisores externos de segurança monitorando o local, como exigem as regras do governo.

Pelo menos duas vezes antes, veículos de construção tinham atolado na mesma estrada onde o caminhão de Lee empacou ao fazer a curva, segundo a acusação. Em janeiro, um trabalhador da agência de ferrovias advertiu os supervisores de segurança do projeto para melhorarem a inclinação e a superfície da estrada e instalar cercas de proteção. Isso não foi feito.

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Lee não deveria ter recebido a empreitada, para começar. Quando a Administração de Ferrovias de Taiwan procurou empresas para reforçar a encosta em 2019, as duas empresas de Lee foram inelegíveis porque não tinham experiência nesse tipo de trabalho. Então Lee usou a licença de uma companhia maior, a Tung Hsin Construction, para se candidatar, apesar de isso ser ilegal, segundo a acusação. Em troca, dizem os promotores, ele ofereceu à companhia maior uma parte do lucro.

Empreiteiros e especialistas que falaram com o Times disseram que o órgão frequentemente concedia contratos à proposta mais baixa, priorizando a poupança acima da segurança. A ênfase nos custos, segundo dois empreiteiros, dissuadiu companhias mais reputadas de se apresentarem.

A agência "acredita no uso de mão de obra barata para realizar operações de alto risco", disse Chen Hong-shan, um empreiteiro que trabalhou em vários projetos para a administração de ferrovias. "Essa é sua prática há décadas. "Ele acrescentou que como os orçamentos da agência muitas vezes reservam muito pouco para medidas de segurança, as empreiteiras tinham de tomar atalhos para tornar as obras rentáveis, comprometendo o trabalho.

A agência, em resposta por escrito, disse que enquanto alguns contratos foram concedidos à empresa que fez a proposta mais baixa, outros foram para os "mais vantajosos". Nesses casos, disse a agência, o histórico de segurança e a experiência de uma empreiteira foram fatores decisivos.

Os promotores acusaram Lee e outros seis de responsabilidade criminal; quatro foram acusados de homicídio culposo. Se for condenado em todas as acusações, Lee poderá pegar 12 anos de prisão.

Alertas

Em 2017, Liao Ching-lung, um especialista em segurança em ferrovias e assessor do governo, estava estudando um vídeo de um descarrilamento de trem na costa leste de Taiwan, quando percebeu algo alarmante: a ferrovia estava em péssimas condições. Preocupado, ele solicitou uma reunião com autoridades do Ministério dos Transportes. "Eu disse a eles que era uma questão de tempo para que houvesse um acidente na ferrovia", disse ele. A advertência de Liao foi premonitória.

Em 2018, o Puyuma Express, outro trem operado pela agência de ferrovias, descarrilou na mesma rota, chamada linha Curva do Norte, matando 18 pessoas. E o choque de abril ocorreu na mesma linha.
Embora a investigação do acidente de Puyuma pelo conselho de segurança tenha culpado o condutor por desabilitar o sistema de aviso de velocidade automático, o relatório do conselho também marcou problemas endêmicos no órgão, dizendo que ele habitualmente adiava ou evitava reparos e manutenção em vagões e trilhos para manter os trens no horário.

O conselho também citou o fracasso da agência em fornecer aos trabalhadores equipamento adequado e treinamento de segurança. O modo como a agência é organizada "pode fazer a preocupação da empresa ter prioridade sobre a segurança na ferrovia na tomada de decisões", advertiu o conselho em seu relatório final, divulgado no ano passado.

Investigadores do conselho disseram ao Times que a agência não implementou completamente as mudanças que disse ter adotado. Por exemplo, o órgão, apesar de suas afirmações, ainda não tem um processo formal abrangente para relatar questões de manutenção, disse Li, um dos investigadores. "Eles só tinham aceitado as mudanças no papel —não as colocaram em prática", disse Young Hong-tsu, presidente do conselho de segurança.

Depois do choque do Taroko Express em abril, o Ministério do Trabalho auditou 195 projetos em andamento na agência de ferrovias e descobriu 306 casos de violações de segurança em locais de construção. Eles incluíam falhas na instalação de cercas de proteção e avaliações de risco inadequadas. O trabalho foi suspenso em 15 casos.

Desde o acidente de abril, a agência disse que vai instalar mais barreiras ao longo dos trilhos para captar detritos que caem, assim como sensores para avisar os condutores de potenciais obstáculos. Ela também disse que vai usar tecnologia de vigilância para monitorar melhor os canteiros de obras. O governo pretende dar mais de US$ 500 mil à família de cada pessoa morta no acidente.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves  

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