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Nova lei de direitos digitais gera temor de risco à liberdade de expressão em Portugal

Especialistas apontam que artigo pode levar a interpretação de que Estado é o responsável por decidir se informação na internet é verdadeira

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Lisboa

Em vigor a partir deste sábado (17), a nova lei de direitos digitais em Portugal tem sido alvo de críticas devido a um potencial risco à liberdade de expressão. Especialistas em tecnologia, jornalistas, políticos e ONGs já manifestaram preocupação com o artigo 6º da regra, que pode levar a uma interpretação de que o Estado é o responsável por decidir se uma informação publicada na internet é verdadeira ou não.

O governo rechaça a possibilidade, mas a polêmica em torno da legislação, batizada de Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, já se instalou. O texto da lei estabelece o conceito de desinformação —“toda narrativa comprovadamente falsa ou enganadora (...) para obter vantagens econômicas ou para enganar deliberadamente o público”— e diz que qualquer um pode apresentar queixa sobre o tema numa entidade específica: a ERC (Entidade Reguladora da Comunicação Social).

Plenário do Parlamento português, em Lisboa
Plenário do Parlamento português, em Lisboa - Petro Fiuza - 9.mar.21/Xinhua

Atualmente, a ERC, um órgão público com autonomia do governo, é responsável por supervisionar e regular veículos de imprensa. Com a nova regra, o escopo de abrangência da entidade seria expandido para informações publicadas online de uma maneira geral. Ou seja: o órgão, em última análise, poderia ter, a depender da interpretação, o poder de decidir o que é conteúdo considerado legítimo no país.

O texto prevê mecanismos de apoio à tomada de decisão sobre desinformação, como a criação de "estruturas de verificação por órgãos de comunicação social registrados" e a "atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas", mas não especifica que órgãos seriam esses nem responde de que maneira manteria a isenção das entidades diante das verbas dadas pelo governo para realizar o trabalho.

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Na avaliação do constitucionalista José Carlos Vieira de Andrade, em entrevista à agência Lusa, “os termos em que a lei está redigida, sobretudo por utilizar conceitos indeterminados, pode levar a uma restrição da liberdade de expressão”. Para o especialista, o artigo 6º pertence à “família das censuras”.

Presidente da Associação D3 (Defesa dos Direitos Digitais), o advogado Eduardo Santos considera que ainda é prematuro falar em risco à liberdade de expressão, mas faz amplas críticas a esse ponto do texto.

“A solução proposta é usar a ERC, cujo papel é bastante criticado. É uma crítica comum dizer que ela não faz o suficiente para evitar algumas práticas menos boas na imprensa”, afirma. “A comunicação social é uma atividade muito regulada. Já a regulação na internet é muito mais difícil, é uma ordem de grandeza completamente diferente. Por isso é bastante discutível se conseguiremos regular esse discurso por meio dos mesmos mecanismos a que estamos habituados na comunicação social.”

Diante da polêmica, o Sindicato dos Jornalistas de Portugal afirmou que pedirá à Procuradoria-Geral uma revisão da constitucionalidade do artigo. Além de indicar que a lei pode confundir o que é informação produzida por jornalistas profissionais e o que não é, o órgão critica o desvio de funções da ERC. Para o sindicato, a mudança “significaria desviar para uma entidade administrativa competências que são dos tribunais, como a de aferir a legitimidade do exercício da liberdade de criação e de expressão”.

Apesar da controvérsia, a legislação foi aprovada no Parlamento português em abril, sem nenhum voto contrário —e apenas algumas abstenções. Só depois que a regra já havia saído da Casa alguns partidos, como a Iniciativa Liberal, que se absteve na votação, passaram a criticar o artigo 6º.

No fim de junho, o Partido Socialista, maior bancada do Parlamento e legenda do premiê António Costa, apresentou um projeto de lei complementar para regulamentar os pontos mais questionados da lei, como o tipo de financiamento às instituições que apoiariam o combate à desinformação, e foi acompanhado por outras siglas, que deliberam iniciativas semelhantes.

“Nós costumamos dizer que o diabo está nos detalhes, e aqui não temos nenhum tipo de detalhes. Não havendo detalhes, estamos na área da especulação. É preciso uma outra legislação que desenvolva o artigo”, diz Santos.

Ex-professor de direito constitucional, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa promulgou a lei, em maio, sem nenhum questionamento a possíveis restrições à liberdade de expressão. Questionado posteriormente sobre o assunto, defendeu o conteúdo da regra.

“Seria grave se o Estado fizesse censura, seria intolerável. E seria intolerável que, mesmo não fazendo censura prévia, fizesse censura a posteriori. Nunca promulgaria uma lei dessas, passei toda a minha vida a defender a liberdade de imprensa, nunca a promulgaria”, afirmou, em declarações a jornalistas.

O chefe de Estado comparou a atribuição dos selos de informações confiáveis às chancelas que atualmente existem em outras áreas, como no setor do turismo, que são concedidos por instituições de utilidade pública, mas não estatais. “Não é o Estado, só faltava que fosse o Estado a dizer. São outras entidades que o fazem. Vale o que vale, é uma opinião”, completou.

Apesar das críticas ao artigo sobre desinformação, especialistas veem pontos positivos na Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, como o reforço do chamado direito de neutralidade da internet e o direito à cibersegurança. “Um dos pontos positivos é que consagra-se o dever do Estado de ter uma ligação de internet acessível e de qualidade disponível a todos”, diz Santos.

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