Argentina chega a 100 mil mortos em meio a tentativas de combinar vacinas e medo da delta

Com eleições legislativas marcadas para novembro, políticos tomam decisões de olho no calendário

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Buenos Aires

Com mais 610 óbitos nesta quarta-feira (14), a Argentina ultrapassou a marca de 100 mil mortos por Covid, em meio a uma tentativa de acelerar a vacinação a partir da combinação de imunizantes e ao temor diante da variante delta —identificada em ao menos 15 pessoas que chegaram do exterior.

Os testes para a combinação de fármacos de diferentes laboratórios começaram na segunda (12), com mais de 4.000 voluntários. A ideia é vacinar aqueles que receberam, na primeira dose, o imunizante Sputink V.

O laboratório russo Gamaleya, que fechou contrato de 10 milhões de vacinas com o governo argentino, afirmou não ter capacidade industrial para cumprir o acordo a tempo, devido ao agravamento da pandemia na Rússia. Assim, mais de 6 milhões de argentinos que receberam a primeira dose da Sputnik V correm o risco de ultrapassar o teto de 3 meses, considerado o intervalo máximo entre a primeira e a segunda aplicação, sem que sejam completamente imunizados. Trezentos mil já estouraram esse prazo.

Coveiros trabalham no cemitério de Chacarita, em Buenos Aires
Coveiros trabalham no cemitério de Chacarita, em Buenos Aires - Emiliano Lasalvia - 11.ago.20/AFP

A Sputnik V é uma vacina com dois componentes. Por isso, em teoria, quem tomou a primeira dose dessa vacina, de vetor viral não replicante, precisa esperar o segundo componente do mesmo laboratório.

Os estudos, porém, tentam avaliar a possibilidade de completar a imunização com uma dose da AstraZeneca, também de vetor viral não replicante, ou da Sinopharm, de vírus inativado. Os testes, cujos resultados estão previstos para serem divulgados daqui a três semanas, estão sendo realizados pelo Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas.

Para o infectologista Jorge Geffner, que participa do estudo, a mistura de vacinas "é uma solução boa e, a princípio, segura". "Não há razão para que sejam incompatíveis, já que todas têm o mesmo objetivo."

Num primeiro momento, devido à chegada lenta de imunizantes ao país, o governo decidiu ampliar a aplicação da primeira dose, estendendo o período para a distribuição da segunda, para aumentar a cobertura vacinal argentina. Assim, 43,6% da população adulta recebeu uma dose, e 11,2%, as duas.

"Essa era a decisão adequada de um ponto de vista pragmático, num primeiro momento", diz o infectologista Javier Farina. "O aparecimento da variante delta e a eficácia menor dos imunizantes contra essa mutação, porém, indicam que o correto agora é correr com a segunda dose", afirma.

O teste sobre a combinação de doses está relacionado a essa mudança de enfoque, assim como a compra, na semana passada, de 20 milhões de doses da vacina da Moderna, que ainda não começaram a ser entregues. O presidente Alberto Fernández vem sendo muito criticado pela oposição por ter recusado uma oferta da Pfizer, em agosto do ano passado, devido a uma "questão de soberania nacional".

Patricia Bullrich, líder do PRO, principal partido de oposição, afirmou que o peronista havia pedido suborno ao laboratório americano e, diante da recusa, as negociações foram interrompidas. Em reação, Fernández entrou com denúncia de difamação contra Bullrich, e o fato é que, por ora, a Argentina está sem o imunizante da farmacêutica, embora tenha participado dos testes de desenvolvimento do fármaco.

O governo também voltou a fazer restrições para tentar interromper a disseminação da segunda onda, que começou logo depois das férias de verão, quando houve flexibilização do funcionamento de bares, restaurantes, voos locais e hotéis. Em 1º de junho, o país atingiu um recorde de 35 mil casos por dia.

As viagens internacionais, liberadas de modo controlado em setembro de 2020, foram outra vez restringidas com rigor, e o limite máximo diário de entrada de passageiros no país, de 2.000, em fevereiro, passou agora para 600, ou pouco mais que três aviões lotados.

Desde o ano passado, estão totalmente proibidos os voos que saem e chegam do Chile, do Brasil e do México. Já as aeronaves que têm como destino a Europa e os EUA voltaram a ser liberadas.

Com um grande fluxo de passageiros que viajaram a Miami ou Madri para se vacinar ou passar férias, a medida mais recente atingiu 45 mil argentinos no exterior. Um dos que ficaram "presos" temporariamente fora do país é o ex-presidente Mauricio Macri, cujo voo de volta da Suíça foi cancelado.

A oposição realizou forte pressão para que esse número fosse revisto, e a partir da próxima semana será permitida a entrada de 1.500 pessoas por dia —a cifra deve aumentar gradativamente até voltar ao nível anterior à pandemia. Ainda assim, só argentinos e residentes podem ingressar no país, que segue fechado ao turismo internacional. Brasileiros que estejam na Argentina têm de retornar pela fronteira terrestre.

Florencia Carignano, diretora de Migrações, afirmou que, para o restabelecimento total do fluxo de voos internacionais, é necessário que todos cumpram o protocolo ao chegar, o que inclui um teste de antígenos pago pelo passageiro ao desembarcar, um teste PCR aos que tiverem resultado positivo e uma quarentena de sete dias. Em algumas províncias, o confinamento tem de ser feito em hotéis pagos pelo viajante.

Nesta semana, porém, ao menos três passageiros vindos dos EUA, do Paraguai e do Panamá com a variante delta não cumpriram as regras e estão sendo procurados pela polícia. "Estamos apresentando denúncia contra todos eles, por atentado contra a saúde pública", disse Carignano.

Com eleições legislativas marcadas para novembro, os governos, tanto o nacional como os das províncias, têm tomado decisões de olho nas urnas. A oposição, que comanda a capital federal, Buenos Aires, por exemplo, tem um perfil pró-abertura da economia, e o chefe de governo da cidade, Horacio Rodríguez Larreta, defende que lojas, restaurantes e demais atividades continuem funcionando com protocolos.

Já o governo nacional e de algumas províncias lideradas por peronistas, como a de Buenos Aires, defendem políticas mais agressivas, como toque de recolher e uso do transporte público apenas para trabalhadores essenciais. Outras, ainda, investem para salvar suas economias locais, muito centradas no turismo. A província de Salta, por exemplo, está distribuindo imunizantes da AstraZeneca e da Sinopharm em locais turísticos e pretende estimular o turismo de vacinas no país.

Fernández, por sua vez, enfrenta queda de popularidade. No início de seu governo e da pandemia, em abril de 2020, o mandatário chegou a ultrapassar 70% de aprovação, principalmente devido à boa gestão da crise sanitária e ao acordo de reestruturação da dívida externa. Hoje, porém, essa cifra caiu para 34%, segundo o instituto Poliarquía. A queda está relacionada ao aumento da pobreza, em 42%, à alta inflação, de 35% acumulada no último ano, e ao fato de, mesmo com uma longa quarentena de quase sete meses, os números de casos e mortos permanecerem em um patamar alto.

Num de seus pronunciamentos, no início da quarentena, Fernández afirmou que as medidas duras tinham um objetivo: "Prefiro ter mais 10% de pobres a 100 mil mortos". Só que agora o cenário é o de uma pobreza que cresce em meio a 100 mil óbitos provocados pela Covid-19.​

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