Descrição de chapéu Folhajus África

Se fosse brasileiro, ex-presidente da África do Sul, preso por desacato à Justiça, estaria livre

Figura jurídica que levou Jacob Zuma à prisão faz parte da 'common law', comum em países colonizados pelos britânicos

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BAURU (SP)

Se Jacob Zuma, ex-presidente da África do Sul, fosse brasileiro, muito provavelmente estaria respondendo às várias acusações de corrupção das quais é alvo em liberdade. Depois de ignorar convocações e faltar a diversas audiências nos processos criminais a que responde, ele foi condenado a 15 meses de prisão por "desacato à Justiça" —crime não previsto na legislação brasileira.

Na decisão em que determinou a detenção de Zuma, a juíza Sisi Khampepe, do Tribunal Constitucional, a mais alta instância da Justiça sul-africana, enumera alguns dos episódios em que o ex-presidente foi convocado para depor e colaborar com as investigações, mas deixou de comparecer.

Zuma, em resposta às intimações e mesmo diante da iminência do indiciamento por desacato à corte, divulgou comunicados em que se dizia vítima de uma caça às bruxas com motivação política e de tratamento injusto por parte da Justiça. Para Khampepe, no entanto, as declarações caracterizaram uma tentativa "imprópria e irresponsável" de "minar intencionalmente a lei".

Homem em frente a grafite com as palavras "Zuma livre" em Vosloorus, na África do Sul
Homem em frente a grafite com as palavras "Zuma livre" em Vosloorus, na África do Sul - Siphiwe Sibeko/Reuters

"Zuma tinha todo o direito e oportunidade de defender seus direitos, mas optou, uma e outra vez, por rejeitar publicamente e difamar totalmente o Judiciário", escreveu a magistrada na decisão de 127 páginas, acrescentando que o Tribunal Constitucional fez tudo para salvaguardar o direito a defesa do acusado, apesar de sua "insolência". "Suas tentativas de despertar a simpatia do público por meio de tais alegações vão de encontro à razão. Elas são um insulto à dispensa constitucional pela qual tantas mulheres e homens lutaram e perderam suas vidas", continuou Khampepe.

Mas o discurso de Zuma encontrou respaldo em parte dos sul-africanos que, desde a última sexta-feira, foram às ruas em manifestações políticas contra a prisão do ex-presidente. Os atos, porém, foram rapidamente sobrepostos por uma onda de violência e saques em lojas que deixou ao menos 72 mortos.

Se estivesse sujeito às normas do direito brasileiro, Zuma poderia estar assistindo ao caos que se instalou nas maiores cidades da África do Sul em liberdade, porque não há na legislação do Brasil um crime tipificado como "desacato à Justiça". Um dos principais motivos é que o sistema legal na África do Sul é fundamentalmente diferente do que vigora no Brasil, explica Maristela Basso, professora de direito internacional da Universidade de São Paulo (USP).

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Segundo a especialista, o modelo brasileiro é conhecido como "civil law", também chamado de direito romano-germânico. É o mesmo sistema vigente na Europa continental e em toda a América Latina.

"O 'civil law' tem por base o direito codificado, a lei escrita em códigos, de tal forma que o indivíduo saiba exatamente o que ele pode ou não pode fazer. Assim, os juízes apreciam e levam em conta fundamentalmente a lei, o sistema de direito civil", explica Basso. Já a África do Sul segue o modelo de "common law", também chamado de direito consuetudinário. É o sistema que vigora em países colonizados pelos ingleses, como a própria África do Sul, além de Índia, parte do Canadá e quase todos os EUA —com exceção da Louisiana, onde há forte influência francesa, que segue um modelo híbrido.

O "common law" se diferencia do direito romano porque dá ao juiz a possibilidade de proferir suas decisões levando mais em consideração a regra dos precedentes jurídicos do que a lei propriamente dita.

"Evidentemente, nesse julgamento há lei e, nesses países, há códigos e constituições, mas digamos que o juiz tem maior liberdade para julgar com suas convicções e, fundamentalmente, mas não exclusivamente, levando em conta o precedente", diz a professora.

Apesar das diferenças dos sistemas legais, um crime como o cometido por Zuma na África do Sul poderia estar contemplado em outras tipificações penais na lei brasileira, como o crime de "desacato à autoridade", em caso de ofensa ou desrespeito a um funcionário público no exercício de sua função.

Não há no Brasil, contudo, a possibilidade de "desacatar a Justiça", enquanto um dos poderes integrantes do Estado, ao lado do Legislativo e do Executivo, explica Marco Aurélio Florêncio, professor de direito penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "O Poder Judiciário não possui honra subjetiva, isto é, não pode ser diretamente ofendido. É a mesma regra que se aplica às pessoas jurídicas que não podem ser vítimas do crime de injúria, por exemplo", diz o especialista.

Deixar de atender uma convocação da Justiça, como Zuma fez na África do Sul, é prática relativamente comum no Brasil, afirma Basso, da USP. A professora cita como exemplos casos em que convocados a depor no âmbito da Operação Lava Jato simplesmente não o fizeram, o que, em várias ocasiões, levou a ações de condução coercitiva. Na condição de investigado, Zuma não cometeria crime no Brasil se descumprisse uma intimação, mas sua ausência poderia acarretar implicações à sua defesa, visto que o processo poderia ser julgado à revelia, isto é, sem a presença do acusado.

Florêncio, da Mackenzie, também destaca um cenário previsto pela Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário desde 1992. "Nesse tratado, consta no artigo 8º que o acusado tem o direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo nem a se declarar culpado. Percebe-se, ainda, o direito do acusado de não produzir provas contra si, podendo ficar, inclusive, em silêncio", explica.

Araken de Assis, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e professor emérito da Pontifícia Universidade Católica do mesmo estado, estudou a possibilidade de tipificação do "desacato à Justiça" no direito brasileiro nos mesmos moldes dos países onde vigora o "common law". Em artigo sobre o tema, concluiu que "parece implausível que se reconheça ao juiz o princípio da autoridade, confiando à sua humana falibilidade o grave poder de induzir o comportamento dos litigantes à subordinação", ou seja, não é boa ideia dar mais poder a quem está sujeito a erros e excessos.

Para Basso, o jurista está correto. "Alargar interpretações abre brecha para o exercício abusivo da autoridade, seja por parte do delegado, do juiz ou de qualquer outro agente público", afirma. "Há que se tomar muito cuidado no Brasil com a possibilidade de ampliação da lei ou do entendimento [sobre o desacato à Justiça], porque há essa tendência ao abuso de autoridade, de poder e das prerrogativas."

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