Os atentados suicidas em Cabul, capital do Afeganistão, nesta quinta (26), adicionam mais uma camada à crise que vive o país: ao caos político e humanitário, soma-se o terrorismo do Estado Islâmico.
A situação também abre uma janela de oportunidade para o Talibã, grupo fundamentalista que tomou o poder há pouco menos de duas semanas, empregar a agenda pública que lhe vem sendo cobrada por possíveis parceiros internacionais, como Rússia e China, afirma Aureo Toledo, professor de relações internacionais e estudos para paz da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
"Há a possibilidade de angariar outros apoios, que se somariam com o objetivo comum de combater o terrorismo."
Ao criticar publicamente os ataques que deixaram dezenas de mortos, diz Toledo, o Talibã tenta imprimir uma imagem que atraia a comunidade internacional, aspecto de grande importância para a sustentação financeira do grupo. À Folha o professor explica as principais diferenças entre Talibã e EI, projeta que a retirada de pessoas de Cabul deva ser acelerada e destaca as consequências para os afegãos.
O que os ataques desta quinta mudam na situação já instável do Afeganistão? O Estado Islâmico é uma organização odiada pelos Estados Unidos, pela China, pela Rússia e pelo Talibã. Se o EI começar a operar dentro do Afeganistão [com intensidade], isso pode fazer com que o Talibã consiga eventualmente o apoio de outros países para combatê-los. O EI é um racha da Al Qaeda, e o Talibã nunca teve relações próximas com o EI, porque o grupo tem táticas de atacar muçulmanos, algo que os talibãs nunca endossaram.
Qual a atuação do EI no Afeganistão? A ambição deles sempre foi fazer um grande califado transnacional, o que sempre encontrou resistência. No caso do Afeganistão, a resistência vinha do Talibã, que tem amplo apoio. Mesmo fora de governo, o Talibã controlou cerca de 70% do território afegão em alguns momentos. Hoje, controla mais territórios do que controlou nos anos 1990.
É uma relação de rivalidade. O ramo do EI no Afeganistão é fraco. É preciso observar se esse ramo vai ganhar as atenções da cúpula do EI, passando a receber recursos para fazer mais atentados. O contexto de segurança mudou muito com a saída dos Estados Unidos, o que pode atrair o terrorismo.
O terrorismo na região tende a ganhar musculatura? É cedo para dizer isso. Antes dos ataques desta quinta, a conjuntura do Talibã já era diferente da dos anos 1990, quando o grupo ascendeu pela primeira vez. Naquele momento, o Talibã apoiou grupos terroristas, particularmente a Al Qaeda. Agora, depois da guerra ao terror, a agenda contra o terrorismo é compartilhada por muitos países.
A China não quer que o Talibã desestabilize a fronteira. A Rússia também não quer apoio do Talibã a grupos terroristas. O que se pode dizer é que foi aberta uma oportunidade de o EI voltar para a mídia, já que ele não estava tão atuante desde 2017. O EI viu uma janela de oportunidade para ter repercussão, mas é difícil falar que o terrorismo vá escalar.
Como definir as diferenças entre EI e Talibã? O Talibã é um movimento que tinha como proposta controlar o Afeganistão e "reislamizar" o país. O grupo não tinha, naquele momento, pretensões de ir além do Afeganistão. O EI tem proposta diferente, ainda que ambos adotem visões deturpadas do que é o islã, e emerge com uma ideia de ser um grande califado internacional que ultrapasse fronteiras estatais.
Em termos de radicalização, o Estado Islâmico é mais radical que a Al Qaeda e o Talibã. São todos movimentos que cometeram atrocidades de direitos humanos, mas algo que nem a Al Qaeda nem o Talibã fazem é priorizar os ataques a muçulmanos, diferente do EI.
São inúmeros os ataques talibãs a afegãos muçulmanos... O Talibã cometeu diversas violações de direitos humanos, em especial contra mulheres. Quando digo que não matam muçulmanos, tem a ver com os alvos estratégicos do grupo. O Talibã privilegia atores externos, como, por exemplo, os americanos. Ainda assim, quando o grupo esteve no governo, de 1996 a 2001, houve violações de direitos humanos para as pessoas que, segundo eles, não seguiam a sharia [lei islâmica] na interpretação talibã.
Já o Estado Islâmico não faz essa diferenciação e ataca o muçulmano, a população local, como estratégia principal. Podemos diferenciar da seguinte forma: o Talibã, quando ataca, faz uso do terror para governar, colocar medo nos cidadãos; mas evita, nos atentados, privilegiar alvos muçulmanos. O EI não.
Porta-vozes do Talibã, que tem histórico de ataques violentos, condenaram os atentados. Como ler essas manifestações? O Talibã está tentando passar uma imagem para os atores internacionais. Países que o Talibã tem interesse porque seriam interessantes para a sustentação financeira do grupo, como Rússia e China, não são favoráveis ao terrorismo. A ideia é atrair a atenção de países que podem trazer dividendos.
Agora eles estão interessados em se perpetuar no poder, há uma pretensão de sustentação, o que requer dinheiro, que eles terão que buscar nos atores internacionais. O Afeganistão é um país cronicamente dependente de ajuda externa ao longo de sua história. Mantendo-se no território, o Talibã vai poder tributar a população, mas também vai precisar de parceiros.
Podemos dizer que o EI é o principal entrave doméstico ao Talibã? Neste momento, não. O EI Khorasan, em comparação com o Talibã, é um grupo fraco. Em termos domésticos, o Talibã controla um território maior do que o de 2000. Há uma pequena região, o vale de Panjshir, que ainda não está sob controle talibã, mas ainda é cedo para dizer se haverá resistência ali.
Uma outra questão é sobre o Exército Nacional do Afeganistão, que era grande. Para onde vão os soldados? Vão aderir ao Talibã? Vão para a resistência? Ou eventualmente vão para o EI?
Como os ataques podem impactar a retirada das tropas americanas e dos civis? Os atentados podem levar a uma aceleração da retirada. Manter tropas ou não cumprir o prazo [da retirada] poderia criar novos alvos de ataques. Não vejo possibilidade de os ataques fazerem com que a ocupação perdure.
Como os ataques do EI podem aprofundar o desastre humanitário? Hoje 14 milhões de afegãos estão em situação de insegurança alimentar, passando fome. Secas nos últimos anos acabaram com as plantações de trigo, que é um insumo importante na alimentação do país. Há também os deslocados internos, pessoas que tiveram que sair das suas casas, e a pandemia de Covid. A vacinação no Afeganistão está atrasada, e há relatos de províncias em que o Talibã vem proibindo a vacinação.
É uma série de desafios humanitários com a qual o governo talibã precisa lidar. A comunidade internacional poderia fazer corredores humanitários para permitir que essa população tenha acesso a remédios e alimentação. Temos um desastre humanitário. Uma crise que já era política e humanitária, e agora se adiciona o terrorismo. O quadro é muito preocupante para os afegãos.
Raio-X
Aureo Toledo, 39
Mestre e doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo), é professor associado de relações internacionais e estudos para paz na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Em suas pesquisas, dedica-se à paz no contexto internacional, à falência dos Estados e ao contexto afegão.
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