Descrição de chapéu talibã Ásia

Ataque abre brecha para Talibã contar com ajuda internacional, diz cientista político

Para Aureo Toledo, atuação do grupo fundamentalista será guiada pela necessidade de atrair China e Rússia

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Os atentados suicidas em Cabul, capital do Afeganistão, nesta quinta (26), adicionam mais uma camada à crise que vive o país: ao caos político e humanitário, soma-se o terrorismo do Estado Islâmico.

A situação também abre uma janela de oportunidade para o Talibã, grupo fundamentalista que tomou o poder há pouco menos de duas semanas, empregar a agenda pública que lhe vem sendo cobrada por possíveis parceiros internacionais, como Rússia e China, afirma Aureo Toledo, professor de relações internacionais e estudos para paz da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

"Há a possibilidade de angariar outros apoios, que se somariam com o objetivo comum de combater o terrorismo."

Ao criticar publicamente os ataques que deixaram dezenas de mortos, diz Toledo, o Talibã tenta imprimir uma imagem que atraia a comunidade internacional, aspecto de grande importância para a sustentação financeira do grupo. À Folha o professor explica as principais diferenças entre Talibã e EI, projeta que a retirada de pessoas de Cabul deva ser acelerada e destaca as consequências para os afegãos.

A person wounded in a bomb blast outside the Kabul airport in Afghanistan on Thursday, Aug. 26, 2021, arrives at a hospital in Kabul. The Pentagon confirmed at least two blasts outside the Kabul airport and said there were a number of casualties, after Western governments warned of a security threat there. (Victor J. Blue/The New York Times)
Homem ferido após as explosões chega a um hospital de emergência em Cabul - Victor J. Blue - 26.ago.21/The New York Times

O que os ataques desta quinta mudam na situação já instável do Afeganistão? O Estado Islâmico é uma organização odiada pelos Estados Unidos, pela China, pela Rússia e pelo Talibã. Se o EI começar a operar dentro do Afeganistão [com intensidade], isso pode fazer com que o Talibã consiga eventualmente o apoio de outros países para combatê-los. O EI é um racha da Al Qaeda, e o Talibã nunca teve relações próximas com o EI, porque o grupo tem táticas de atacar muçulmanos, algo que os talibãs nunca endossaram.

Qual a atuação do EI no Afeganistão? A ambição deles sempre foi fazer um grande califado transnacional, o que sempre encontrou resistência. No caso do Afeganistão, a resistência vinha do Talibã, que tem amplo apoio. Mesmo fora de governo, o Talibã controlou cerca de 70% do território afegão em alguns momentos. Hoje, controla mais territórios do que controlou nos anos 1990.

É uma relação de rivalidade. O ramo do EI no Afeganistão é fraco. É preciso observar se esse ramo vai ganhar as atenções da cúpula do EI, passando a receber recursos para fazer mais atentados. O contexto de segurança mudou muito com a saída dos Estados Unidos, o que pode atrair o terrorismo.

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O terrorismo na região tende a ganhar musculatura? É cedo para dizer isso. Antes dos ataques desta quinta, a conjuntura do Talibã já era diferente da dos anos 1990, quando o grupo ascendeu pela primeira vez. Naquele momento, o Talibã apoiou grupos terroristas, particularmente a Al Qaeda. Agora, depois da guerra ao terror, a agenda contra o terrorismo é compartilhada por muitos países.

A China não quer que o Talibã desestabilize a fronteira. A Rússia também não quer apoio do Talibã a grupos terroristas. O que se pode dizer é que foi aberta uma oportunidade de o EI voltar para a mídia, já que ele não estava tão atuante desde 2017. O EI viu uma janela de oportunidade para ter repercussão, mas é difícil falar que o terrorismo vá escalar.

Como definir as diferenças entre EI e Talibã? O Talibã é um movimento que tinha como proposta controlar o Afeganistão e "reislamizar" o país. O grupo não tinha, naquele momento, pretensões de ir além do Afeganistão. O EI tem proposta diferente, ainda que ambos adotem visões deturpadas do que é o islã, e emerge com uma ideia de ser um grande califado internacional que ultrapasse fronteiras estatais.

Em termos de radicalização, o Estado Islâmico é mais radical que a Al Qaeda e o Talibã. São todos movimentos que cometeram atrocidades de direitos humanos, mas algo que nem a Al Qaeda nem o Talibã fazem é priorizar os ataques a muçulmanos, diferente do EI.

São inúmeros os ataques talibãs a afegãos muçulmanos... O Talibã cometeu diversas violações de direitos humanos, em especial contra mulheres. Quando digo que não matam muçulmanos, tem a ver com os alvos estratégicos do grupo. O Talibã privilegia atores externos, como, por exemplo, os americanos. Ainda assim, quando o grupo esteve no governo, de 1996 a 2001, houve violações de direitos humanos para as pessoas que, segundo eles, não seguiam a sharia [lei islâmica] na interpretação talibã.

Já o Estado Islâmico não faz essa diferenciação e ataca o muçulmano, a população local, como estratégia principal. Podemos diferenciar da seguinte forma: o Talibã, quando ataca, faz uso do terror para governar, colocar medo nos cidadãos; mas evita, nos atentados, privilegiar alvos muçulmanos. O EI não.

Porta-vozes do Talibã, que tem histórico de ataques violentos, condenaram os atentados. Como ler essas manifestações? O Talibã está tentando passar uma imagem para os atores internacionais. Países que o Talibã tem interesse porque seriam interessantes para a sustentação financeira do grupo, como Rússia e China, não são favoráveis ao terrorismo. A ideia é atrair a atenção de países que podem trazer dividendos.

Agora eles estão interessados em se perpetuar no poder, há uma pretensão de sustentação, o que requer dinheiro, que eles terão que buscar nos atores internacionais. O Afeganistão é um país cronicamente dependente de ajuda externa ao longo de sua história. Mantendo-se no território, o Talibã vai poder tributar a população, mas também vai precisar de parceiros.

Podemos dizer que o EI é o principal entrave doméstico ao Talibã? Neste momento, não. O EI Khorasan, em comparação com o Talibã, é um grupo fraco. Em termos domésticos, o Talibã controla um território maior do que o de 2000. Há uma pequena região, o vale de Panjshir, que ainda não está sob controle talibã, mas ainda é cedo para dizer se haverá resistência ali.

Uma outra questão é sobre o Exército Nacional do Afeganistão, que era grande. Para onde vão os soldados? Vão aderir ao Talibã? Vão para a resistência? Ou eventualmente vão para o EI?

Como os ataques podem impactar a retirada das tropas americanas e dos civis? Os atentados podem levar a uma aceleração da retirada. Manter tropas ou não cumprir o prazo [da retirada] poderia criar novos alvos de ataques. Não vejo possibilidade de os ataques fazerem com que a ocupação perdure.

Como os ataques do EI podem aprofundar o desastre humanitário? Hoje 14 milhões de afegãos estão em situação de insegurança alimentar, passando fome. Secas nos últimos anos acabaram com as plantações de trigo, que é um insumo importante na alimentação do país. Há também os deslocados internos, pessoas que tiveram que sair das suas casas, e a pandemia de Covid. A vacinação no Afeganistão está atrasada, e há relatos de províncias em que o Talibã vem proibindo a vacinação.

É uma série de desafios humanitários com a qual o governo talibã precisa lidar. A comunidade internacional poderia fazer corredores humanitários para permitir que essa população tenha acesso a remédios e alimentação. Temos um desastre humanitário. Uma crise que já era política e humanitária, e agora se adiciona o terrorismo. O quadro é muito preocupante para os afegãos.


Raio-X

Aureo Toledo, 39
Mestre e doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo), é professor associado de relações internacionais e estudos para paz na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Em suas pesquisas, dedica-se à paz no contexto internacional, à falência dos Estados e ao contexto afegão.

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