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Conflito com radicais islâmicos em Moçambique cresce e já envolve 6 países

Vizinhos enviam tropas para ajudar no combate a terroristas em Cabo Delgado

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São Paulo

As imagens do navio de patrulha sul-africano SAS Makhanda na costa de Moçambique e a chegada, no último final de semana, de uma coluna de blindados Casspir, que um dia já foram usados pelo regime do apartheid contra manifestantes, marcaram o início de uma nova etapa no combate a radicais islâmicos na província de Cabo Delgado.

Tropas sul-africanas durante operação militar na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique - Alfredo Zuniga/AFP

O conflito iniciado em 2017, que já causou a morte de 3.000 pessoas e o deslocamento de 800 mil no norte moçambicano, adquire agora contornos regionais.

Ao menos cinco países africanos enviaram tropas a Moçambique ou estão em vias disso, aumentando a escala do confronto e os riscos envolvidos.

Localizado no extremo norte da ex-colônia portuguesa, Cabo Delgado é historicamente uma região pobre e isolada, que pareceu ter tirado a sorte grande há dez anos, com a descoberta de vastos depósitos de gás natural offshore.

Como rotineiramente ocorre na África, no entanto, a riqueza mineral trouxe junto mais instabilidade.

No caso moçambicano, isso se traduziu no surgimento da facção Ansar al-Sunna (“defensores da tradição”), que reúne cerca de 3.000 combatentes e alega ter ligações com o Estado Islâmico.

Em março deste ano, o grupo fez sua ação mais ousada, na cidade de Palma, usada como base por diversos trabalhadores estrangeiros. O ataque deixou dezenas de mortos e provocou a suspensão das operações pela francesa Total, que detém a concessão para exploração do gás.

Gerou também uma reação por parte do governo de Moçambique, que reverteu sua relutância inicial e finalmente pediu ajuda internacional.

“No começo, o governo de Moçambique tratava a questão como um caso de banditismo comum, de perturbadores da ordem que seriam vencidos rapidamente. Houve uma certa ingenuidade, mas os fatos acabaram se impondo, porque a situação se complicou”, diz Salvador Forquilha, que pesquisa o assunto no Instituto de Estudos Sociais e Econômicos (Iese), de Moçambique.

A ação multinacional envolve cinco países, além de Moçambique. Quatro deles integram uma força de estabilização da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral), um bloco regional.

É liderada pela África do Sul, que fornece o contingente mais numeroso (1.500 homens) e a maior parte do equipamento militar pesado. São parte desta força também, por enquanto, Zimbábue, Botsuana e Angola. Há ainda informações extraoficiais de que tropas da Tanzânia já atuariam em território moçambicano.

Complicando o cenário, há mais mil homens enviados por Ruanda, que operam fora da cadeia de comando da força da SADC, após uma negociação bilateral com o governo moçambicano.

Além disso, equipes militares de EUA e União Europeia oferecem treinamento às Forças Armadas moçambicanas. O governo ainda contratou mercenários russos e sul-africanos para ajudar a combater os rebeldes, que teoricamente já saíram, mas suspeita-se que continuem ativos.

“Se não houver coordenação entre essas diferentes forças, a operação vai se tornar uma bagunça”, diz Jasmine Opperman, analista de defesa sul-africana que vem acompanhando a crise.

As tropas de Ruanda estariam sendo financiadas pela França, embora não haja confirmação dos governos envolvidos.

Com experiência em missões de paz no continente e uma reputação de profissionalismo e impetuosidade, os ruandenses foram os primeiros a chegar. Eles apregoam terem já assegurado a circulação em áreas antes tomadas pelos radicais e matado dezenas deles em combate.

Já a missão da SADC tem procedido de forma mais lenta e afirma que vai permanecer por apenas três meses, o que analistas acham completamente irrealista.

“Com relação a estradas e áreas de fronteira, é possível um controle mais rápido, mas para vencer os insurgentes é preciso entrar no mato, e isso não é fácil. Não é algo que dure menos de um ano”, afirma Opperman.

Os radicais adotam táticas de guerrilha e métodos consagrados por outros terroristas, como explosões e a decapitação de civis e militares.

Apesar disso, diz Alex Vines, especialista do centro de estudos britânico Chatham House, é um exagero vê-los apenas como uma extensão de outros grupos islâmicos.

“Essa rebelião é menos sobre jihadismo e mais sobre questões práticas, como a falta de direitos para a população”, afirma Vines. “A suposta ligação com o Estado Islâmico é mais uma forma de os militantes conseguirem atenção global.”

Integrantes de contingente militar de Ruanda se preparam para entrar em operação em Cabo Delgado, no norte de Moçambique - Cyril Ndegeya/Xinhua

Segundo ele, o norte de Moçambique é culturalmente muito próximo de regiões da África central, com forte tradição islâmica.

“Cabo Delgado está numa das pontas do chamado ‘corredor suaíli’, com ligações pessoais e culturais que vão até a Somália. É uma região de influência islâmica, mas não necessariamente radicalizada”, afirma Vines.

Ele estima que mais de 90% dos combatentes sejam moçambicanos ou vindos da Tanzânia, país que faz fronteira com Cabo Delgado. Um punhado apenas seria proveniente de outros países ou do Oriente Médio.

“Por outro lado, caso o conflito se expanda, Cabo Delgado pode começar a atrair jovens radicalizados de outras partes do mundo, como ocorreu com Iraque e Síria em anos recentes”, afirma o pesquisador.

O cenário de uma guerra regional interminável, envolvendo cada vez mais países, neste momento não é o mais provável, dizem os analistas. “Os países africanos não têm recursos para manter-se em Cabo Delgado indefinidamente”, afirma Opperman.

Apenas a África do Sul estimou seus gastos em cerca de R$ 350 milhões, uma conta que vem sendo objeto de críticas internas no país.

Apesar disso, a avaliação por ora é de que é necessário combater o radicalismo islâmico antes que cresça e se transforme em mais um foco de instabilidade no continente.

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Só o projeto de extração de gás em Cabo Delgado é avaliado em US$ 20 bilhões, e não tem previsão de retomada.

Além disso, cerca de 1 milhão de pessoas precisam de ajuda humanitária em razão do conflito, segundo o Programa Alimentar Mundial, da ONU.

“O risco de o radicalismo islâmico se alastrar pela África austral existe. Em ataques feitos em Cabo Delgado, já houve indícios de presença de cidadãos sul-africanos”, diz Forquilha.

Segundo ele, mesmo que a insurgência seja controlada, a tensão na região não deve desaparecer de imediato.

“Tudo indica que teremos uma zona com uma espécie de violência endêmica, como ocorre no leste da República Democrática do Congo. E oxalá o grupo não se fragmente, porque isso tornará o combate muito mais complicado”, afirma o pesquisador.

O governo de Moçambique, que tem cerca de 4.000 militares atuando na região, tem adotado uma estratégia que mescla uso de força e gestos diplomáticos.

Num pronunciamento no final de julho, o presidente Filipe Nyusi agradeceu a presença de tropas estrangeiras e prometeu manter as operações de combate até derrotar a insurgência.

Ao mesmo tempo, o ex-presidente Joaquim Chissano (1986-2005), liderança ainda bastante influente no país, propôs que em algum momento haja negociações com os radicais.

“É provável que no curto prazo a situação dê uma certa acalmada. Mas a grande questão é: após a poeira baixar, o que impede que o problema apareça de novo?”, afirma Vines.

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