Neonazis lutam pelo poder em uma aldeia na Alemanha

Com campos para treinar tiro na floresta e ameaças à população, estado alemão é laboratório para a extrema direita

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Maria João Guimarães
Ludwigslust (Alemanha) | Público

Antes eram distinguidos pelas cabeças raspadas e roupa de uma certa marca, por provocarem desacatos e ataques nas cidades. Hoje têm barba, as mulheres não usam calças, são ecológicos e defendem um modo de vida tradicional. Neonazis e extremistas estão aproveitando partes pouco povoadas da Alemanha para fazer campos de treino e até ter locais seguros onde possam se esconder.

“Pensava que eram pessoas que viam muitos filmes de terror, meio malucas, mas inofensivas”, diz o político Heiko Bohringer, da cidade de Ludwigslust, norte da Alemanha, que acabou por ver o seu nome, e a sua casa, na lista de inimigos de um dos grupos. “Mudei de ideia.”

Com a bandeira da Alemanha, mulher participa de uma manifestação de extrema direita contra as restrições implementadas para limitar a propagação do coronavírus, em Munique - Christof Stache - 16.mai.20/AFP

Um dos primeiros locais onde ficou à vista o fenômeno da extrema direita alemã ocupando pequenas localidades no interior foi Jamel que, como Ludwigslust, se situa no estado federado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental —um estado que, segundo o perito em prevenção Daniel Trepsdorf, é “um laboratório” da extrema direita. Jamel ficou conhecida pela atividade política de um casal que decidiu fazer oposição à extrema direita.

Já foi há 17 anos que Birgit e Horst Lohmeyer, ela escritora e ele artista, compraram a casa dos seus sonhos para sair da cidade em que viviam, Hamburgo. Nunca tinham se interessado por política.

Sabiam que um conhecido neonazi vivia no local, mas não tinham noção de que a pequena rua, com meia dúzia de casas de cada lado, separada da sua casa por uma pequena rotunda, estava sendo totalmente ocupada por famílias de neonazis.

Foram pressionados a sair. Recusaram e decidiram a partir daí lutar contra os extremistas, com ações locais e um grande festival que acontece todos os anos. Mantiveram-se mesmo depois de, em 2015, terem sofrido um ataque com fogo (um convidado que estava no jardim viu o início do incêndio e por isso não houve mais estragos ou vítimas). Ficaram sob proteção policial.

Neste ano, os 300 ingressos para o festival (menos do que o habitual por causa da Covid) esgotaram em dois minutos. Na última semana, estavam lá as “Omas gegen Rechts” (“avózinhas contra a direita”) e mais pessoas que vivem perto, curiosas com o que irão ouvir —outra característica do festival é que só se sabe quais bandas vão se apresentar quando cai uma cortina na frente do palco. Já lá tocaram músicos muito conhecidos, como Die Ärtzte, Die Toten Hosen ou até Herbert Grönemeyer.

Mesmo ao ouvir o ensaio de som, não se percebe quem irá tocar. O que dá para sentir: um arrepio de estar ali tão perto dos extremistas, como dizem Jacqueline Neuse, 29, e Benjamin Schröder, 39, que trabalham numa grande loja de reparos e se deslocaram sem problemas por três horas e meia de carro para estar ali, ela já pela segunda vez. “Contei a ele a ideia, ele adorou e viemos”, diz Jacqueline.

“É bom que não fiquem aqui sozinhos”, diz pelo seu lado a design gráfica Janina. “Sabia que a casa era perto dos neonazis, mas não conseguia adivinhar quão perto”, comenta. O festival tem uma forte presença policial e entradas estritamente controladas logo na estrada de acesso —só há uma entrada no local, que é uma espécie de beco sem saída—, para evitar que extremistas que vivem lá, ou mesmo que venham de fora, possam criar problemas. Os organizadores pedem também que as pessoas não façam “turismo” na rua dos neonazis.

O festival é uma arma importante, diz Birgit Lohmeyer: “A nossa força está na consistência”. Também os prêmios que receberam, por coragem cívica (Zivilcourage, algo muito importante na Alemanha), são relevantes: “Muitas pessoas nos vêem com indiferença ou até animosidade”, conta. Estes prêmios mostram a estas pessoas, e aos seus opositores, que o trabalho que fazem tem mérito e apoio.

Birgit Lohmeyer defende que se divulguem os mecanismos com que a extrema direita tenta se apropriar de lugares e instituições. “Fazemos isso com eventos, dando entrevistas e com trabalho político, como formação nas escolas”, diz. “Só se pode contrariar ideias extremistas com educação de qualidade e para o maior número de pessoas possível.”

Crianças se mantêm fiéis

Daniel Trepsdorf, membro de um centro de prevenção de extremismo com sede em Ludwigslust, diz por telefone que as escolas são o ponto de entrada, já que na Alemanha não é permitido ensino em casa.

Outras estratégias que podem ser aplicadas em cidades, como infiltração de agentes nos grupos extremistas, são impossíveis em aldeias com 20 famílias neonazis.

Mesmo assim, sua organização já ajudou quatro ou cinco mulheres e crianças a sair destas estruturas nos últimos sete anos. São processos que demoram muito tempo, porque quem sai é logo posto numa lista e pode ser alvo de retaliações. É preciso mudar totalmente de vida e por vezes são necessárias alterações muito semelhantes às dos processos de proteção de testemunhas.

As mulheres são quem mais deixa esses movimentos, em parte por causa da “extrema violência” contra as crianças, diz Trepdorf. A educação é orientada para “quebrar” as crianças, tirar-lhes a empatia. São ensinadas a disparar armas, forçadas a matar pequenos animais, até bezerros.

Andrea Röpke, jornalista e coautora de um livro sobre o fenômeno (Völkische Landnahme: alte Sippen, junge Siedler, rechte Ökos, algo como "ocupação nacionalista: clãs antigos, jovens colonos, ecologistas de direita"), também aponta a dureza da educação, em que não é desejada a individualidade, argumentando que esta constitui uma situação de abuso e risco para as crianças. “Hoje, vemos que a maioria das crianças se mantém fiel” a estas ideias e a este modo de vida.

Nas escolas, os professores são ensinados a reconhecer sinais de que as crianças podem vir de uma destas famílias, conta Trepdorf​. Normalmente, usam roupas mais tradicionais, feitas à mão (as meninas e os jovens não usam calças), não vão a aniversários de outras crianças, entre outros sinais mais diretos como cantarem músicas da juventude nazi. Reconhecendo, aprendem técnicas para lidar com as crianças, com a principal preocupação de não as excluir.

Mas as crianças aprendem desde cedo a manter secreta a vida em casa, diz Röpke, por email​. “A família é considerada a unidade política menor e é importante para a reconquista nacional.”

As mulheres, relata Röpke, não saem do papel tradicional de mães, e os homens têm muitas vezes profissões como engenheiros de várias áreas, incluindo de florestas, ou profissões de trabalho manual, e dedicam-se, em paralelo, à agricultura.

O fato de parecerem antiquados faz com que os comparem, por exemplo, aos amish, uma ramificação protestante. A diferença é que estes querem expandir a sua visão do mundo centrada numa ideia de supremacia biológica e lutam por isso. Não querem estar nas margens da sociedade, mas sim no centro. Parte da estratégia é ganhar poder nas pequenas comunidades, com as famílias em geral muito ativas nas escolas e instituições locais.

Trazem vida a comunidades envelhecidas e desertificadas e aproveitam as regiões pouco povoadas com muitos espaços livres, onde fazem treinos militares e de sobrevivência, explica Trepsdorf. “Estão se preparando para o Dia X”, diz. O Dia X é um dia mítico para a extrema direita, em que há um acontecimento que precipita o desabar do sistema democrático, e eles tomarão o poder.

Heiko Böhringer era uma das 50 pessoas consideradas como um perigo para o movimento e sinalizadas como alvo para o Dia X. Soube disso em 2019, mas tudo começou anos antes.

O papel da polícia

No ano de 2015, quando ainda não havia qualquer indício de qualquer movimento Nordkreuz (este começaria a esboçar-se no final deste ano), Böhringer recebeu uma ameaça de morte. Pensa que se deveu à oposição aberta que sempre teve à extrema direita e ao partido neonazi NPD, que tem representação no Parlamento, e ainda ao seu ativismo pelos limites às turbinas eólicas que, numa região muito pobre, dão rendimento a várias pessoas —que podem participar na compra das empresas que instalam as turbinas e ganhar rendimento da produção de energia

A ameaça “chegou por carta, era uma ameaça detalhada, sabiam mais da minha vida e da minha mulher do que eu”. Como sabiam? O teriam vigiado? Ele abana a cabeça: não faz ideia. Só sabe que foi pensada e preparada. “Não foi um miúdo que se lembrou um dia de mandar uma carta.”

Mal leu a carta, foi direito à polícia. Dois agentes visitaram sua casa e desenharam uma planta, para saberem onde dormia, onde estava e a que horas, por onde se poderia entrar. Ficou algum tempo sob proteção policial.

Na altura, Böhringer discutiu com a família o que fazer e, admitindo que o fato de os três filhos já serem adultos ajudou, decidiu manter a sua atividade política. A vida continuou sem grandes surpresas.

Não voltou a pensar muito em nada disto até que quatro anos mais tarde foi chamado para ser testemunha de um processo envolvendo elementos do grupo Nordkreuz. A razão: numa das buscas a casas dos membros do grupo, apareceu uma planta da sua casa. Ele a reconheceu logo, era a planta que tinha sido desenhada quatro anos antes pelos polícias que foram a sua casa após a ameaça.

Como foi ali parar a planta da casa? Quem passou a quem? Que apoio tem o grupo dentro da polícia? O processo procura ainda dar respostas a estas perguntas.

A investigação ao grupo Nordkreuz começara em 2017, por suspeitas de planejamento de um atentado terrorista. Os investigadores tiveram luz verde para vigiar os seus elementos e foi aí que descobriram os planos para o Dia X e uma lista de compras que incluía sacos para pôr cadáveres. Há ainda uma investigação paralela a três membros do grupo por suspeitas de roubo de uma metralhadora e 10 mil munições da polícia. A emissora alemã Deutsche Welle cita investigadores dizendo que poderá haver quatro grupos com preparativos semelhantes para o Dia X na Alemanha.

Políticos locais ameaçados

O que Böhringer foi sabendo pelo processo: ele era uma de cerca de 50 pessoas que no Dia X deveriam ser procuradas, levadas e “postas num campo” (usa a expressão Lager, como em Konzentrationslager, campo de concentração). Não conhece as outras pessoas. “Sei que há alguns políticos do partido Die Linke [esquerda radical] em Rostock.”

Böhringer não fala dos sacos para pôr cadáveres que são referidos no processo.

Os planos para o Dia X eram detalhados e previam até uma localização segura para os membros do grupo: um local com acesso a água fresca, um lago que daria para tomar banho e lavar roupa, com veados que poderiam caçar para comer, com abrigo.

“É fácil esconderem-se nestes lugares”, onde, diz, usando uma expressão alemã, “a raposa e a lebre dizem ‘boa noite’”, o que quer dizer: não se passa nada, não há ninguém e, por isso, é o local perfeito para quem quer ficar fora do radar de qualquer tipo de autoridade.

O perigo da extrema direita ganhou uma nova dimensão com o assassinato do político local Walter Lübcke, em Kassel, em 2019. Há muitos políticos ameaçados, sobretudo em nível local. Não há meios para ter proteção policial para todos.

Apesar de tudo isto, Heiko Böhringer continua e, na semana passada, fez campanha no mercado semanal de Ludwigslust, uma atividade política que tem à margem do seu trabalho de engenheiro.

Os temas que o interessam são como levar de novo vida e crescimento à região, cheia de potencial –fala animado de como, quando a internet funcionar em todo o lado e terminarem as obras na ferrovia, a cidade estará a uma hora, hora e meia quer de Berlim quer de Hamburgo, e de ser o local ideal para “trabalhar e viver no meio do verde”. Este é o momento e tem de se aproveitar já, defende.

Por isso, em relação à ameaça que tem sobre si, diz apenas: “Tem de se viver com isto. Poderia escolher não fazer nada, mas…”, encolhe os ombros. Não foi isso que ele escolheu.

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