Descrição de chapéu 11 de setembro terrorismo

Vinte anos do 11 de Setembro escancaram falência dos EUA em cumprir promessa de união

País, imbuído de esperança após atentados, está hoje mais cético, dividido, xenofóbico e paranoico do que aquele de 2001

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Washington

Tania Head conta que estava no World Trade Center no dia do ataque terrorista que mudou a história dos Estados Unidos. Da janela, viu a primeira aeronave atingir a torre onde seu marido, Dave, trabalhava às 8h46 daquele 11 de setembro de 2001.

Minutos depois, ouviu a segunda explosão, mais próxima, que a arremessou contra uma parede de mármore. Desnorteada, desceu 78 andares em meio aos escombros, até encontrar um jovem que, antes de morrer, apagou o fogo que consumia partes do corpo dela.

Tania também afirmou ter acordado em um hospital com a notícia de que estava viúva e que só conseguiu vencer a depressão com o envolvimento na Rede de Sobreviventes do World Trade Center, associação sem fins lucrativos que chegou a presidir após o atentado.

Instalação artística 'Tributo em Luz', em Nova York, em homenagem às vítimas do 11 de Setembro, nos 20 anos dos atentados terroristas
Instalação artística 'Tributo em Luz', em Nova York, em homenagem às vítimas do 11 de Setembro, nos 20 anos dos atentados terroristas - Ed Jones - 7.set.21AFP

Assim como ela, os americanos tentavam emergir da tragédia mais fortes, apoiando-se em histórias de superação e heroísmo para enfrentar o luto e a dor. Mas Tania, que na verdade é Alicia, mentiu.

Ela não estava no World Trade Center no 11 de Setembro. Nem mesmo nos Estados Unidos. No dia em que os aviões destruíram as Torres Gêmeas, ela estudava administração em Barcelona, na Espanha.

O ambicioso —e falso— roteiro se tornou uma alegoria da tese de que era possível ver esperança e união aflorar da catástrofe, ideia que se provou pouco realista. Vinte anos depois, os EUA são um país mais cético, dividido, xenofóbico e paranoico do que aquele de 2001.

O 11 de Setembro é o evento com mais consequências na história americana recente. Assolou os EUA em sua mais longa guerra, no Afeganistão, redefiniu a política, a economia, as prioridades e, principalmente, transformou de forma definitiva o psicológico coletivo do país.

Após o otimismo da década de 1990, os americanos mergulharam em crises sobrepostas, com comportamentos moldados por medo, ódio e pela descrença no poder público, diante de procedimentos de segurança cada vez mais rigorosos para entrar, sair e circular no país.

Professor do departamento de psiquiatria da Universidade de Michigan, Adam Horwitz explica que, entre os seres humanos, a resposta natural ao trauma é a busca por controle e previsibilidade, que acontece sob um modo muito mais instintivo do nosso cérebro. "Existe um efeito sócio-psicológico em resposta ao terrorismo ou a ameaças de morte e, quando estamos nesse modo, tendemos a usar mais atalhos, uma parte mais profunda do nosso cérebro que não tem a lógica e o raciocínio, é apenas instintivo."

No caso de um trauma coletivo, como o produzido pelo 11 de Setembro, afirma o professor, a resposta é da mesma ordem e pode intensificar comportamentos que sempre fizeram parte da história americana, como o patriotismo e o preconceito contra imigrantes.

"Dentro da psicologia evolucionista, vemos a tendência de favorecer pessoas que se pareçam conosco. Quando você está sob sensação de ameaça e medo, está menos disposto a se arriscar com quem não conhece", diz Horwitz. "Depois de um ataque terrorista como esse, portanto, existe uma mentalidade um tanto tribal, de nós contra eles, que pode assumir o controle."

Movimentos políticos e sociais tentaram, por muito tempo, pregar união como forma de combater os terroristas. E o professor explica que, no início, essa sensação prevaleceu, mas o tempo cristalizou sentimentos divisionistas e trouxe mudanças sociais, políticas e econômicas que mudaram o cenário.

Cenas de parlamentares democratas e republicanos cantando, lado a lado, "God Bless America" horas depois do atentado deram lugar a episódios de xenofobia e violência, que escalaram sob a ampliação da força e influência de grupos de extrema direita.

Os crimes de ódio contra muçulmanos, por exemplo, dispararam após os ataques do 11 de Setembro. De acordo com dados do FBI, a polícia federal americana, no fim da década de 1990 eram registrados entre 20 e 30 casos desse tipo por ano. Em 2001, foram formalizadas 481 ocorrências, um aumento de 1.500%.

De lá para cá, os números se mantêm entre 100 e 150 por ano, sem nunca voltarem aos índices pré-11/9.

Tania (ou Alicia) era espanhola e, segundo relatos que estão no documentário "The Woman Who Wasn't There" (a mulher que não estava lá), de Angelo J. Guglielmo Jr., era obcecada pelos EUA e sempre quis viver e trabalhar no país.

Ao diretor, coautor do livro de mesmo nome, Tania contou sua história, repetida a amigos, jornalistas e estudantes. Ela foi guia voluntária do memorial às vítimas do 11 de Setembro e teve em sua plateia de estreia o então prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, e o ex-prefeito da cidade Rudolph Giuliani.

Sob holofotes, Tania se desesperou quando o jornal americano The New York Times decidiu investigar inconsistências da sua história: familiares e amigos de Dave nunca tinham ouvido falar da mulher que dizia ter sido casada com ele, a empresa em que Tania afirmava ter trabalhado no World Trade Center (Merrill Lynch) não tinha registros sobre a suposta funcionária e as universidades nas quais Tania dizia ter estudado, as prestigiosas Harvard e Stanford, também não confirmavam a versão.

Em 2007, o jornal publicou uma reportagem sobre a farsa de Tania, e ela desapareceu. Depois de um boato de que havia cometido suicídio, em 2008, foi vista pela última vez em setembro de 2011, em Nova York.

Linda Gormley, uma das melhores amigas de Tania à época, resumiu a decepção de parte da comunidade de sobreviventes diante do escândalo: "Tania era o meu sinal de que Deus estava lá naquele dia", afirmou, em depoimento ao documentário. "Ter isso tirado de mim, o sinal de que Deus estava lá... Não há nada que ela possa dizer para me fazer esquecer da dor, da raiva e do ódio que sinto por aquela mulher agora."

Em tudo o que já foi escrito e produzido sobre Tania, não há uma explicação clara sobre o que a levou a criar e sustentar a mentira por tanto tempo. Nunca lucrou financeiramente com a associação dos sobreviventes e, portanto, seu comportamento não foi considerado criminoso no país.

Especialistas avaliam que uma das possibilidades seria o ímpeto em querer pertencer a um momento tão significativo para o país que admirava. Mesmo na maior tragédia de sua história recente, com implicações globais imensuráveis, os EUA continuaram atraindo por meio da ideia de que era possível florescer no lodo.

Mas os fatos atropelam as expectativas. Com o fracasso no Afeganistão e preconceitos e inseguranças cada vez mais exacerbados, os EUA são hoje o país que negaram ser depois do 11 de Setembro.

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