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Biden normaliza antiga 'guerra ao terror' com retirada do Afeganistão

Foco na Rússia e na China e ideia de vulnerabilidade tornam mundo lugar mais inseguro

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São Paulo

Do ponto de vista estratégico, os 7.268 dias de presença militar liderada pelos Estados Unidos nunca se justificaram além do seu pontapé inicial.

O "casus belli" em 2001, a punição ao Talibã por não entregar Osama bin Laden e os seus colegas, foi atingido rapidamente, quando o grupo foi posto para correr de Cabul pouco mais de um mês após as primeiras bombas anglo-americanas caírem em solo afegão.

Soldados afegãos levam policial ferido a helicóptero americano na província de Kunar, no auge da ocupação
Soldados afegãos levam policial ferido a helicóptero americano na província de Kunar, no auge da ocupação - Moises Saman - 11.mar.2010/The New York Times

Dali em diante, foi a administração de um custoso fracasso, como os dez anos de caçada até a execução de Bin Laden logo ao lado da principal academia militar do Paquistão demonstraram.

Inicialmente, a ocupação foi vista como uma oportunidade para a estruturação da chamada guerra ao terror pelos falcões de George W. Bush. Os EUA vinham de uma década de dominação unipolar do pós-Guerra Fria, e aproveitar a tragédia do 11 de Setembro para buscar uma reorganização de espaços estratégicos à força estava à mão.

Assim, houve a farsa da guerra no Iraque, que nada a tinha a ver com a Al Qaeda, embora seu fracasso tenha dado à luz rebentos ainda mais radicais do jihadismo, como o Estado Islâmico ora ganhando manchetes com sua sucursal afegã.

Havia também o óbvio componente do cerco ao Irã por suas duas fronteiras principais, além dos bons negócios para os amigos petrolíferos de Bush, para não falar nos infames mercenários e outros bucaneiros de plantão.

Isso tudo seria enfeitado com o discurso bonito da promoção de valores democráticos em locais em que tais conceitos eram vagos, um neocolonialismo do bem, por assim dizer.

Naturalmente, isso não significa que a exposição dos afegãos, por exemplo, a 20 anos de intercâmbio com o Ocidente não tenha formado uma geração mais tolerante e menos propensa a aceitar ser comandada por mulás.

As imagens no aeroporto de Cabul falam por si nesse particular, e é desalentador imaginar o futuro para a população do sofrido país com o retorno do Talibã ao poder.

Mas a imposição de estruturas de poder ocidentais sem o menor interesse pela forma com que a política era negociada nos países invadidos selou o destino sombrio do projeto.

Ele foi um fracasso, como Biden admitiu candidamente desde que anunciou que cumpriria o acordo de Donald Trump com o Talibã. A derrota americana, contínua ao longo dos anos, perdera qualquer sentido na sua visão.

Isso tem um preço óbvio e alto nessa humilhação do capítulo final, que o democrata parece disposto a pagar, na esperança de que o desaparecimento presumido do interesse no assunto Afeganistão o libere para cuidar de outros tópicos de sua extensa lista de lavanderia.

Foto divulgada pelo Comando Central dos EUA mostra o general Chris Donahue, o último militar americano no Afeganistão, embarcando em avião para deixar o país, no aeroporto de Cabul - Jack Holt/Comando Central dos EUA/AFP

O que não significa que o modus operandi da tal guerra ao terror tenha desaparecido, é claro. Ele seguirá firme: os EUA não hesitarão em bombardear alvos que considerem importantes contra um grupo como o EI-K, por exemplo, mas simplesmente tiraram o rótulo de "guerra" do procedimento.

Ironicamente, é uma forma de eternizar as guerras eternas criticadas por todos os presidentes desde Barack Obama. Ao remover a ilusão da "construção de nação", outro conceito caro ao pessoal que lucrou com Bush, Biden opta pelo pragmatismo de baixo custo.

É uma forma de acompanhar a mudança do mundo nesses 20 anos, que viu a Rússia deixar de ser um tigre de papel militar e a China ascender ao posto de desafiante dos EUA pela hegemonia mundial.

Em ambos os casos, há óbices de diversas naturezas no caminho de Vladimir Putin e Xi Jinping, mas a realidade não permite mais aos americanos a ideia de que podem destruir e construir regimes a seu bel-prazer geopolítico.

É a volta da tal política da força, entre Estados-nações com interesses divergentes, que vem tomando corpo nos últimos anos na doutrina militar americana.

Bombas continuarão caindo em rincões perdidos pelo mundo, mas aparentemente a ideia de guerra deixará de lado tais conflitos assimétricos com grupos subnacionais. Mais foco permite alocação de recursos menos difusa também.

Claro, basta um explosivo ser detonado nos EUA ou um civil americano ser degolado em vídeo para isso ser posto à prova, mas o contexto sugere que tais incidentes seriam tratados de forma mais pontual. O estrago que a dita guerra ao terror fez ao mundo já está precificado há tempos.

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Essa é uma constatação geopolítica, independentemente do efeito ou não da atabalhoada retirada nos planos políticos de Biden, que terá um longo trabalho pela frente.

O mundo também não será um lugar mais seguro, ao contrário: além de terroristas verem na vitória talibã um sinal de decadência ocidental a ser explorada, se a próxima vez que um presidente americano declarar guerra o motivo estiver no Donbass, no mar do Sul da China ou em Pyongyang, certamente os riscos para a humanidade serão exponencialmente mais altos.

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