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Artista sul-africana luta para não ser expulsa do Brasil após cumprir pena

Nduduzo Siba se tornou cantora, dançarina e atriz após deixar prisão

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São Paulo

De uma cela na penitenciária feminina aos palcos de teatros reconhecidos de São Paulo, a sul-africana Nduduzo Siba traçou uma trajetória incomum no Brasil. Agora, a artista luta para que esse percurso não seja interrompido por um decreto de expulsão expedido pelo Ministério da Justiça.

Nduduzo, 33, foi presa logo após chegar ao país, em 2013, tentando embarcar no aeroporto de Guarulhos com 12 kg de cocaína em frascos de perfume. Ela, que afirma ter recebido a encomenda de uma amiga e que não sabia do conteúdo ilegal, acabou condenada por tráfico internacional de drogas.

Sem falar português nem conhecer quase nada do Brasil, foi levada à Penitenciária Feminina da Capital, na zona norte. Foram quatro anos cumprindo pena, uma experiência dura, mas também de descobertas.

Graças a um projeto conduzido por uma professora da USP com as detentas, Nduduzo soltou sua voz rouca e potente e deu vazão à musicalidade que desenvolveu desde criança, típica da sua etnia, a zulu.

A artista sul-africana Nduduzo Siba, em foto de 2019
A artista sul-africana Nduduzo Siba - Bruno Santos - 13.ago.19/Folhapress

Depois que foi solta, ela recorreu ao talento artístico para superar as dificuldades que muitos imigrantes egressos do sistema prisional enfrentam, por não terem família no Brasil nem para onde ir.

A sul-africana conseguiu recomeçar e construiu uma carreira como cantora, atriz e dançarina, tendo em seu currículo apresentações no Auditório Ibirapuera, em unidades do Sesc, na Biblioteca Mário de Andrade, no Teatro Oficina, no Bourbon Street e no Instituto Tomie Ohtake.

Também tornou-se palestrante e ativista de movimentos de direitos humanos, deu aulas de dança zulu em festivais e integrou o elenco do filme "A Princesa da Yakuza", que acaba de estrear nos cinemas.

Em 2017, uma ordem de expulsão contra ela foi emitida pelo Ministério da Justiça, como é praxe no caso de estrangeiros que cometem crimes no país. No ano seguinte, após uma campanha e uma ação judicial, um juiz federal suspendeu o decreto, acatando os argumentos de que ela está ressocializada, com laços afetivos e profissionais em solo brasileiro e que o crime que cometeu não justifica a expulsão.

No último dia 25 de agosto, porém, o decreto de expulsão voltou a ser válido. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) reformou a sentença de primeiro grau, aceitando o recurso da União. Os argumentos são os de que o Judiciário considerou o crime grave e que o governo tem o direito de decidir pela expulsão, com base em critérios de segurança e interesse nacional.

Estrangeiros que praticam crime comum doloso no país podem ser expulsos, a não ser que tenham filhos brasileiros ou cônjuge que more no Brasil. Mas a Lei de Migração também prevê a suspensão da medida a critério da autoridade competente e afirma que devem ser consideradas "a gravidade [do crime] e as possibilidades de ressocialização em território nacional".

A Defensoria Pública da União (DPU) apresentou um recurso para que o caso vá para o STJ (Superior Tribunal de Justiça). "A lei estabelece quando é cabível a expulsão, mas não diz que toda vez que a situação for essa a pessoa deve ser expulsa. Existe uma margem, e estamos pedindo que essa margem seja reconhecida, porque a expulsão é uma medida desproporcional no caso dela", afirma a defensora pública federal Heloísa Pigatto.

Segundo ela, o TRF-3 seguiu uma linha mais conservadora e restrita da legislação, anulando a decisão do juiz de primeira instância, que havia tido "uma interpretação mais ampla".

"A sentença [anterior] considerou que ela está inserida na sociedade brasileira, que ela já tinha conseguido um indulto, que se trata de um crime não violento." Em 2018, a DPU já havia pedido a revogação do decreto contra Nduduzo, mas o Ministério da Justiça negou.

Questionada pela Folha, a pasta enviou nota afirmando que o pedido de reconsideração da defesa foi indeferido "por não estar abrangido pelas hipóteses legais aplicáveis à questão, não tendo sido apresentados fatos novos relevantes capazes de reformar a decisão proferida". Afirmou, ainda, que a decisão da segunda instância confirma que não houve irregularidades no decreto de expulsão.

O ministério não respondeu se leva em conta a possibilidade de ressocialização do ex-detento no Brasil ao decidir sobre os decretos.

A campanha Nduduzo Tem Voz, criada em 2018 para pedir a permanência da artista, voltou a ser ativada e ganhou o apoio de parlamentares como as deputadas estaduais Erica Malunguinho e Isa Penna (ambas do PSOL-SP) e os vereadores paulistanos Eduardo Suplicy (PT) e Erika Hilton (PSOL), além de entidades como o Movimento Negro Unificado (MNU), a Pastoral Carcerária Nacional e o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC).

Enquanto isso, Nduduzo diz que está em um "limbo", sem poder regularizar sua documentação nem saber qual será seu destino.

"Estou tentando me organizar, mas não sei o que vai acontecer. Tenho minha vida aqui, as pessoas já conhecem a minha história, são oito anos no Brasil. Não é uma coisa que você levanta amanhã e esquece", diz. "Eu terei que recomeçar do zero [se for expulsa], passar por tudo de novo. Sinto que essa punição não acaba nunca."

Na carta aberta que escreveu pedindo para ficar, ela afirma que não se resume a uma egressa do sistema prisional e que a música tem um papel fundamental. "A arte foi o que eu descobri na prisão. Minha voz acalmava as pessoas. Eu passei a entender que amanhã seria maior, que amanhã seria melhor."

O projeto Voz Própria funcionou de 2014 a 2017 na Penitenciária Feminina da Capital e foi uma iniciativa da cantora e psicanalista Carmina Juarez, professora da Escola de Arte Dramática da USP.

Ela conta que Nduduzo foi uma figura central para o grupo. "Ela tem um talento totalmente único, uma potência musical que eu poucas vezes vi. Além disso, é de uma inteligência sociopolítica muito grande."

A professora percebeu que as sul-africanas têm uma relação especial com a música, tanto que a adesão delas ao projeto foi alta. "A música é intrínseca à cultura zulu. É algo que faz parte da vida, e a musicalidade deles é extremamente desenvolvida, refinada", afirma. "Elas conduziram o trabalho, trouxeram músicas com polifonia, dividindo as vozes, com coreografia. Ensinaram todas as mulheres a cantar em zulu: a russa, a boliviana, a americana, a brasileira."

No período do projeto, havia entre 250 e 450 estrangeiras nessa prisão, de dezenas de nacionalidades —a maioria, condenada por levar drogas na bagagem.

Foi para Carmina Juarez que Nduduzo ligou quando foi colocada em liberdade. Junto com outras participantes do Voz Própria, elas criaram uma extensão do projeto para as integrantes que já haviam sido soltas —o nome era Mulheres Livres.

Para a professora, é admirável que Nduduzo tenha criado uma carreira artística em circunstâncias tão desfavoráveis. Muitas imigrantes nessa situação acabam voltando para o crime. "Depois do tanto que ela lutou para ser reconhecida, de tantos shows, de tanto trabalho ela ser considerada violenta? É uma crueldade", diz.

Karina Quintanilha, pesquisadora da Unicamp, integrante do Fórum Fronteiras Cruzadas e uma das organizadoras da campanha em prol da sul-africana, vê o episódio como emblemático.

"Fica evidente que na segunda instância não houve uma análise do caso concreto. O tribunal reproduziu termos da época da ditadura e do período colonial, como 'pessoa perigosa' e 'indesejável'. Os desdobramentos no Judiciário vão ser determinantes sobre o contexto da criminalização e o debate da própria Lei de Migração."

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