Comissão do Senado dos EUA veta uso de verbas para remover quilombolas em Alcântara

Brasil fez acordo para que americanos usem base de lançamento espacial no Maranhão

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Washington

A Comissão do Senado dos EUA responsável pela alocação de verbas determinou que o governo americano impeça que recursos destinados a ações no Brasil sejam usados na remoção de comunidades indígenas e quilombolas da região de Alcântara (MA).

O veto foi incluído na proposta de orçamento para o ano fiscal de 2022 do Departamento de Estado, que inclui repasses para ações dos EUA no exterior.

"A Comissão está preocupada com os relatos de que o governo do Brasil planeja forçar a realocação de centenas de famílias quilombolas para expandir o Centro de Lançamento de Alcântara. Nenhum dos recursos providos por esta lei ou por leis anteriores podem estar disponíveis para forças de segurança do Brasil que se envolvam em reassentamentos forçados de comunidades indígenas ou quilombolas", afirma o comitê no documento.

Estrutura do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, onde situa-se a plataforma de lançamento de foguetes do Programa Espacial Brasileiro
Estrutura do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, onde situa-se a plataforma de lançamento de foguetes do Programa Espacial Brasileiro - Pedro Ladeira - 14.set.18/Folhapress

O órgão é liderado pelo democrata Patrick Leahy, mas a construção do orçamento é um esforço bipartidário. Apresentado nesta segunda (18), o documento ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Casa.

As leis sobre o orçamento do governo dos EUA são apresentadas de modo separado, mas debatidas em conjunto. Os democratas podem aprovar leis orçamentárias sem apoio republicano, ao usar chamado mecanismo de reconciliação.

No entanto, há uma divisão dentro do próprio partido. Dois senadores democratas se posicionaram contra incluir um plano trilionário de investimentos sociais e ambientais, defendido pelo presidente Joe Biden e por democratas progressistas, dentro do pacote a ser aprovado via reconciliação, o que tem travado a aprovação do orçamento. Além disso, os parlamentares também precisam decidir, até dezembro, sobre aumentar ou eliminar o teto de endividamento do país.

A proposta de orçamento do Departamento de Estado prevê US$ 17 milhões (R$ 94,5 milhões) para ajuda ao desenvolvimento do Brasil, a serem administrados pela Usaid (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional), e outros US$ 20 milhões (R$ 111 milhões) para ações relacionadas a programas ambientais na Amazônia brasileira.

Os EUA e o Brasil fecharam um acordo para que os americanos utilizem a base de Alcântara, no Maranhão, para lançamentos de foguetes. O acerto foi firmado por Jair Bolsonaro com o então presidente americano Donald Trump, em março de 2019, e depois aprovado pelos Congressos dos dois países. O decreto de promulgação do tratado foi assinado pelo líder brasileiro em fevereiro de 2020.

Pelo acerto, os americanos poderão fazer uso comercial da base em troca de recursos para que o Brasil invista no desenvolvimento do programa espacial brasileiro. Na época da negociação, estimava-se que o país poderia receber até US$ 10 bilhões por ano. O governo diz que seguirá com controle total da base e que os americanos farão um uso comercial do espaço, mas sob jurisdição brasileira.

Em outubro de 2019, a Folha mostrou que um plano para remover cerca de 350 famílias de quilombolas da região estava em fase avançada. Elas seriam retiradas dali para permitir a ampliação do CLA (Centro de Lançamentos), comandado pela Aeronáutica, a fim de alugar espaços para operações de outros países.

Em março do ano passado, o governo publicou a resolução que previa a remoção de moradores locais. Decisão da Justiça Federal, porém, suspendeu a retirada, e o Ministério Público Federal recomendou o adiamento da operação em razão da pandemia. Assim, em abril de 2020, o governo federal se comprometeu a não remover quilombolas do território de Alcântara enquanto durar a crise de Covid-19.

Há o temor, no entanto, de que a melhora na situação da pandemia no país possa levar o governo a rever sua posição. "A questão está um pouco adormecida, mas a gente sabe que eles [o governo] não estão parados", diz Célia Pinto, coordenadora da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos).

Ela estima que 800 famílias possam ter de deixar a região caso os planos de expansão das atividades da base avancem e conta que a comunidade local tem avançado na criação de um protocolo para dialogar com o governo. "Não é só vir aqui e fazer uma audiência pública. É preciso ter um caminho para chegar a um consentimento."

Os quilombolas apontam que o Brasil é signatário de uma convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que determina que povos tradicionais precisam ser consultados de forma adequada antes da execução de projetos que impactem seus territórios.

Procurado, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação disse que a base atual pode receber mais lançamentos sem precisar ampliar sua área ocupada. "A tendência é o uso de satélites de pequeno porte. Dessa forma, foguetes também são de menor porte e requerem áreas de segurança menores, o que coincide com a atual capacidade existente", disse o órgão, em nota. A pasta não estimou data para o começo das atividades.

No município de Alcântara, fundado em 1648, o número de escravos chegou a 133,3 mil. A cidade tem hoje 21,8 mil moradores, dos quais 77% se declararam quilombolas.

Para eles, o momento atual é uma espécie de reedição do que viveram a partir de 1983, quando a ditadura militar (1964-1985) realizou a remoção de mais de 300 famílias de 24 povoados para a criação do núcleo central do CLA. Célia conta que famílias que deixaram a região na época levaram até 40 anos para obter os títulos de propriedade das áreas que ocupam —mas que a maioria continua esperando.

"Se você vive da pesca e vai para uma área longe do litoral, como vai sobreviver? Como vai obter seu alimento fresco, plantar seu milho, seu feijão?", questiona. "A intenção da maioria, por enquanto, é não sair. Não somos contra o progresso, desde que ele não venha em detrimento da nossa morte."

Ela também disse que a comunidade de Alcântara tem buscado apoio estrangeiro para a causa.

Nos últimos meses, congressistas democratas e ativistas progressistas têm aumentado a pressão para que o governo de Joe Biden mantenha distanciamento de Jair Bolsonaro, apontando violações de direitos humanos, atos antidemocráticos e destruição ambiental no Brasil.

Só em 2021, houve pelo menos seis cartas e comunicados de deputados e senadores ao presidente americano, ao secretário de Estado, Antony Blinken, e ao assessor de Segurança Nacional, Jake Sullivan, pedindo endurecimento da política externa dos EUA em relação ao governo Bolsonaro.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.