Geógrafo brasileiro auxilia a localizar ossadas da guerra civil de Angola

Após experiência em caso de serial killer em MS, professor foi ao país africano aplicar metodologia

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Florianópolis

Uma cooperação brasileira com Angola se tornou a ferramenta mais recente para ajudar a solucionar uma demanda antiga de familiares de vítimas da guerra civil do país africano. A aplicação desenvolvida em Mato Grosso do Sul de uma tecnologia canadense já foi usada para mapear nove possíveis locais com ossadas do período.

A descoberta começou na sala de aula do geógrafo Ary Rezende Filho, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) na cadeira de pedologia, ciência que estuda o solo. No curso, ele sempre faz uma saída de campo para mostrar o uso de um aparelho, o EM 38-MK, que identifica modificações no solo. Rezende adotava a máquina em seu estudo das lagoas salinas no Pantanal e levou a metodologia para os alunos.

Grupo de soldados leais ao governo do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) patrulha proximidades da cidade de Huambo, a 600 km da capital de Angola, Luanda
Grupo de soldados leais ao governo do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) patrulha proximidades da cidade de Huambo, a 600 km da capital de Angola, Luanda - 12.fev.99/AFP

Um deles, na turma de 2016, era o perito da Polícia Civil Cícero dos Santos. Na época, a corporação buscava os corpos das vítimas de um serial killer chamado Nando, que confessou ter matado 15 pessoas. Os relatos do criminoso não vinham sendo suficientes, e Cícero levantou a hipótese de que a máquina mostrada no curso de geografia poderia identificar uma alteração no solo que levasse a um cadáver. A ideia deu certo, e foi possível encontrar as vítimas que faltavam.

O caso virou tema de seu trabalho de conclusão de curso, orientado por Rezende, e ganhou espaço na mídia sul-mato-grossense à época. As notícias despertaram a atenção do angolano Hamilton Bonga, integrante da Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (Civicop), que buscava soluções para localizar ossadas de mortos na guerra civil.

Como se dera em Mato Grosso do Sul, escavações de sua equipe em locais indicados por relatos vinham acabando frustradas. Ele achou que a estratégia de Santos e Rezende poderia ajudar e, em novembro passado, após enfrentar dificuldades técnicas com o maquinário, levou o professor brasileiro para Angola.

O geógrafo ficou 30 dias no país africano mapeando terrenos indicados como possíveis locais de ossadas. Assim, chegou-se a nove prováveis valas —ainda não é possível saber se nelas há de fato corpos das vítimas nem quantos são. Isso porque o aparelho não funciona como um raio-x, que mostra o que está sob a terra. É preciso analisar o que o maquinário aponta, que se soma à avaliação de um especialista.

"O profissional vai olhar as variáveis de meio ambiente e tentar entender o que dá a mudança na cobertura pedológica [do solo]", explica Rezende. Um trecho não homogêneo, segundo ele, deve ser estudado para determinar se a transformação está ligada à interferência humana ou a uma mudança natural do solo —então se avança ou não para a escavação.

Nos nove potenciais locais com valas da guerra civil identificados por Rezende, ao menos uma ossada já foi confirmada, segundo Bonga.

O professor de geografia da UFMS Ary Rezende Filho, que foi a Angola auxiliar na busca por ossadas da guerra civil
O professor de geografia da UFMS Ary Rezende Filho, que foi a Angola auxiliar na busca por ossadas da guerra civil - Arquivo pessoal

A busca resulta de uma promessa feita no ano passado pelo presidente angolano, João Lourenço, na véspera do 27 de Maio. A data é marcante no país porque, em 1977, uma tentativa de golpe liderada por Nito Alves —que até dias antes integrava o partido no poder, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA)— terminou num sangrento massacre que se estendeu por meses.

"O 27 de Maio é recheado de um conjunto de antecedentes políticos, militares e, até certo ponto, de natureza social e econômica", explica Gilson Lázaro, professor associado da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, em Angola.

Ele cita diferenças raciais e intrigas políticas que contribuíram para a insatisfação popular, fazendo ferver o caldo de um conflito entre diferentes movimentos anticoloniais no qual o país já estava mergulhado desde antes da independência, em 1975.

O MPLA disputava o comando com a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) e a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Um acordo pós-independência entre os três, que formaria um governo de transição e uma Constituição, culminando em eleições, implodiu em guerra, com o MPLA dominando a capital e forçando os adversários a irem para o interior.

Entre períodos de maior ou menor intensidade, o conflito entre esses grupos continuou, também sob influências dos EUA (ligados à Unita) e da União Soviética (que apoiava o MPLA) durante a Guerra Fria. No fim dos anos 1990, com a dissolução da URSS, o partido no poder abandonou a doutrina marxista-leninista, e entrou em cena um sistema de democracia multipartidária.

Os adversários aceitaram participar da formulação e, em 1992, concorreram às primeiras eleições desde a independência, mas a Unita retomou a guerra após o resultado ser favorável ao MPLA. "A partir de 1994 [com o fim do apartheid na África do Sul], os fatores externos já não existiam mais", explica Fabrício da Silva, professor de ciência política na Unirio. "O conflito se dava por questões internas, a disputa por petróleo, recursos e mineração."

O fim dos confrontos só seria selado em 2002, quando o assassinato do líder e fundador da Unita Jonas Savimbi levaria a um acordo de paz. O MPLA continua à frente de Angola até hoje. Estimativas apontam o saldo de 500 mil soldados e civis mortos em três décadas da que é considerada a mais longa e mortífera guerra civil africana. O reconhecimento do governo por seus erros, por sua vez, iria demorar quase 20 anos.

Segundo Lázaro, o tempo fez crescer a pressão social de gente que viu os pais serem mortos no conflito, para que se apurasse a verdade, se responsabilizasse os perpetradores e se entregasse as ossadas. Assim, em 26 de maio de 2021, Lourenço pediu desculpas em nome do governo e prometeu: "Esse pedido público de perdão não se resume a simples palavras, ele reflete nosso sincero arrependimento e a vontade de pôr fim à angústia que as famílias carregam consigo por falta de informação sobre o destino dado a seus entes queridos".

O professor angolano pondera que o presidente quer angariar capital político, "ao se escrever como aquele que pediu desculpas públicas sobre o 27 de Maio, na medida em que esse partido e esse governo têm responsabilidade [no conflito]".

Para Bonga, do Civicop, ele próprio familiar de uma vítima do conflito, a importância do trabalho fala mais alto. "Todos os países têm um lado obscuro na história, e poucos têm coragem de limpar esse lado. Felizmente nós tivemos."

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