Torturado em Guantánamo será enviado à Arábia Saudita para tratar saúde mental

Acusado de envolvimento no 11 de Setembro, Mohammed al-Qahtani foi diagnosticado com esquizofrenia

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Carol Rosenberg Charlie Savage
Washington | The New York Times

O caso de Mohammed al-Qahtani, detento em Guantánamo com transtorno mental, há muito é um problema que o governo dos Estados Unidos não consegue resolver. Suspeito de ter sido o 20º sequestrador da Al Qaeda nos ataques de 11 de Setembro de 2001, ele foi torturado por interrogadores militares na fase inicial de sua detenção na base naval americana em Cuba.

Uma funcionária sênior do Pentágono decidiu mais tarde que ele não poderia ser submetido a julgamento devido ao tratamento inicial que recebera. As autoridades de segurança consideravam que soltá-lo seria perigoso demais. Assim, ele permanece detido há duas décadas.

Na sexta-feira (4), o Pentágono anunciou que, por recomendação de um conselho judicial, Qahtani deve ser repatriado para a Arábia Saudita para entrar num programa de saúde mental e reabilitação para extremistas. A expectativa é que a administração Biden o envie para lá em março.

Homem de cabelo e barba pretos
Mohammed al-Qahtani, detento em Guantánamo com transtorno mental que deverá ser transferido para a Arábia Saudita - Departamento de Defesa dos EUA/The New York Times

A decisão foi tomada depois de um parecer emitido por um médico concluindo que Qahtani, que está na casa dos 40 anos, deve ser transferido porque não pode receber o tratamento médico de que necessita em Guantánamo e está mentalmente afetado demais para representar uma ameaça futura —especialmente se ficar internado, segundo pessoas com conhecimento do parecer.

Em junho passado, o Conselho de Revisão Periódica, que reúne seis agências e revê casos de detentos de Guantánamo que não chegaram a ser formalmente indiciados, teria endossado a decisão por unanimidade. Mas, aparentemente, enquanto negociava com a Arábia Saudita um acordo de segurança para o repatriamento de Qahtani, a administração Biden adiou até a sexta passada o momento de divulgar a decisão.

"O conselho reconhece que o detento representa algum nível de ameaça em vista de suas atividades e associações passadas", disse o comitê, explicando por que considerava que esse risco pode ser "mitigado adequadamente", o que tornaria desnecessária sua detenção contínua por tempo indeterminado.

O órgão citou, entre outros pontos, "a condição mental significativamente comprometida" de Qahtani. Também notou que ele terá apoio familiar na Arábia Saudita e que o país tem condições de lhe oferecer "atendimento abrangente de saúde mental" e também de monitorá-lo e restringir seus deslocamentos se ele concluir um tratamento.

Ramzi Kassem, advogado de Qahtani e professor de direito na City University de Nova York, disse que a decisão de recomendar a transferência de seu cliente deveria ter sido tomada há muito tempo. Citou o transtorno mental grave de seu cliente e suas reiteradas tentativas de suicídio recentes.

"Apesar da gravidade de seu transtorno, Mohammed não representa um risco para ninguém exceto ele próprio", disse o advogado. "Ele precisa de atendimento psiquiátrico na Arábia Saudita, e não continuar encarcerado em Cuba."

Qahtani é um dos 39 detentos ainda remanescentes na prisão de Guantánamo e um dos 19 que foram recomendados para transferência sujeita a medidas de segurança. O secretário de Defesa, Lloyd Austin, deve por lei informar ao Congresso 30 dias antes de qualquer transferência que está satisfeito com o acordo.

Mas a maioria desses 19 detentos não pode ser enviada para casa porque vem de países instáveis, como Iêmen e Somália, que não podem por lei receber detentos de Guantánamo. Assim, a administração Biden precisa encontrar países dispostos a recebê-los. Como Qahtani pode ser repatriado, poderá ser o primeiro a partir.

Sua notoriedade se deve a sua tentativa de entrar nos EUA em 4 de agosto de 2001, quando um inspetor de imigração no aeroporto de Orlando o barrou. Mais tarde as autoridades descobriram que Mohamed Atta —um dos líderes do ataque lançado por 19 sequestradores e que no mês seguinte fez quase 3.000 mortos— fora a Orlando encontrar-se com Qahtani.

Esse fato levou as autoridades a concluir que a Al Qaeda enviou Qahtani para ser membro da equipe que sequestrou o voo 93 da United Airlines. Passageiros desse voo resistiram aos sequestradores e levaram o avião a cair num campo da Pensilvânia, em vez de seu provável alvo pretendido, o Capitólio americano.

Qahtani nunca chegou a ser julgado ou condenado por participação nessa conspiração. Mesmo que tivesse sido, não está claro se ele, que sofreu lesão cerebral traumática na infância e recebeu diagnóstico de esquizofrenia antes de tentar entrar nos EUA, tinha conhecimento específico dos planos que Atta teria tido para ele.

Quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em resposta aos ataques do 11 de Setembro, Qahtani havia começado a frequentar círculos jihadistas. Ele foi capturado em dezembro de 2001 com um grupo de combatentes estrangeiros na fronteira do Paquistão. Ele e os combatentes que se acreditava terem sido guarda-costas de Osama bin Laden foram levados a Guantánamo no início de 2002.

Ainda naquele ano as forças militares americanas admitiram que Qahtani talvez não fosse um detento com os outros. Com autorização do então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, ele foi submetido a dois meses de interrogatório contínuo e brutal pelas forças americanas dentro de um barraco de madeira no Campo X-Ray, no final de 2002 e início de 2003.

Relatórios vazados para a revista Time detalhando os interrogatórios de hora em hora revelaram que os interrogadores militares colocaram Qahtani em solitária, o deixaram nu, rasparam sua barba à força e o sujeitaram a privação prolongada de sono, desidratação, exposição ao frio e diversas humilhações psicológicas e sexuais, como obrigá-lo a latir como um cão, dançar com um homem e usar roupa íntima feminina na cabeça. Os interrogadores arrancaram uma confissão, que ele mais tarde repudiou.

O tratamento ao qual Qahtani foi submetido foi tão abusivo e degradante que a oficial da administração Bush responsável por comissões militares, Susan J. Crawford, concluiu em 2008 que ele não poderia ser levado a julgamento. Porque "nós o torturamos", segundo o que ela disse ao jornal Washington Post naquele ano, Crawford se recusou a autorizar que ele fosse julgado ao lado de Khalid Sheikh Mohammed, o autodeclarado autor intelectual dos ataques, e quatro outros detentos acusados de ajudá-lo.

Mohammed e os quatro outros —cujo processo no sistema de comissões militares está em fase de audiências pré-julgamento há quase uma década— também foram torturados sob custódia americana. Mas isso foi feito em prisões da CIA em países terceiros, e descrições explícitas só vieram à tona anos após a decisão de Crawford sobre Qahtani. As torturas às quais foram sujeitos pela CIA vêm sendo um problema grande nos processos deles.

Ainda em 2009 o então vice-presidente eleito Joe Biden reconheceu o impasse em torno de Qahtani. "Estamos herdando uma situação muito complicada", ele disse dias antes de assumir seu cargo. "Não está tudo claro e límpido."

Ex-funcionários da administração recordam que, como vice, Biden apoiou plenamente a promessa do presidente Barack Obama de acabar com as operações de detenção em Guantánamo, que incluiu pedir pessoalmente a líderes de outros países que ajudassem a reassentar detentos que não podiam ser mandados de volta a seus países de origem. O Congresso aprovou uma lei que frustrou o plano de Obama de transferir alguns dos detentos para uma prisão diferente em território americano, mas a administração conseguiu, mesmo assim, reduzir em muito o número de presos encarcerados na base.

O único detento a deixar Guantánamo durante o governo de Donald Trump também foi transferido para a Arábia Saudita para ficar encarcerado lá. Hoje, passado um ano do início da Presidência de Biden, sua administração transferiu apenas mais um. Biden diz que fechar a prisão em Guantánamo é um de seus objetivos, mas não vem pressionando o Congresso a rescindir a lei que impede que qualquer detento seja trazido para prisões de alta segurança em solo dos EUA, nem tampouco nomeou um enviado especial para negociar acordos de transferência, como fez a administração Obama.

A repatriação de Qahtani foi aprovada após ações litigiosas de seus advogados de defesa, Ramzi Kassem e Shayana Kadidal, do Center for Constitutional Rights. Eles argumentam que o detento merece ser entregue à Arábia Saudita por motivos médicos, conforme previsto na Convenção de Genebra e numa norma do Exército americano.

Os advogados contrataram uma psiquiatra que trata militares veteranos americanos com estresse pós-traumático, Emily Keram, para avaliar Qahtani ao longo dos anos, começando em 2015. Keram conseguiu a ficha médica de Qahtani da Arábia Saudita, mostrando que muito tempo antes de chegar a Guantánamo ele já sofrera um surto psicótico agudo atribuído à esquizofrenia.

A tortura apenas teria agravado sua condição, escreveu a psiquiatra numa série de relatórios enviados ao tribunal, e Qahtani desconfia dos médicos militares americanos, provavelmente porque médicos militares acompanharam seus interrogatórios. Ele recusou medicamentos psicotrópicos e nos últimos anos tentou o suicídio várias vezes, por enforcamento, cortando-se e engolindo cacos de vidro, como mostram documentos judiciais.

Em 2020, com base no trabalho da psiquiatra, um juiz federal ordenou um exame independente por uma comissão formada por três médicos, dois dos quais não americanos. O Departamento de Justiça do governo Trump resistiu à ordem do juiz, que teria levado à primeira intervenção médica estrangeira numa prisão de guerra.

Em vez disso, o Congresso criou o cargo de um médico da Marinha que seria lotado na base de Guantánamo, mas trabalharia de modo independente. Os advogados de Qahtani concordaram em adiar a resolução do caso judicial enquanto o médico estudava as fichas médicas militares e as conclusões de Keram. O governo tem o prazo final de até segunda-feira (7) para informar o tribunal de sua posição em relação à ordem do juiz que exige um exame independente.

Em maio, o médico da Marinha, Corry J. Kucik, concordou com as conclusões de Keram, segundo pessoas que estão a par do relatório de sete páginas que ele redigiu para o Conselho de Revisão Periódica.

Kucik concordou que Qahtani foi prejudicado pela lesão cerebral que sofreu na infância e a esquizofrenia que desenvolveu na adolescência, e também que seu interrogatório brutal e detenção contínua subsequente teriam apenas agravado o problema.

Kucik também teria concordado que Qahtani não pode receber o atendimento adequado em Guantánamo e que é extremamente improvável que represente um risco se for transferido para um hospital psiquiátrico saudita próximo de sua família, onde sua saúde mental poderá ser melhor tratada.

Tradução de Clara Allain

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