Cidade da Ucrânia cercada por tropas da Rússia resiste à invasão, apesar de dias difíceis

Moradores tentam manter a vida e o moral em meio a bombardeios e necrotério superlotado

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Michael Schwirtz
Mikolaiv (Ucrânia) | The New York Times

Alla Riabko está no pátio do necrotério da cidade, tremendo de sofrimento e fúria. Seu filho, Roman, foi morto nos combates do primeiro dia da guerra na Ucrânia, mas já se passaram duas semanas e seu corpo ainda não foi preparado para ser sepultado.

"Ele está ali, dentro de um saco", ela diz, apontando para cadáveres cobertos deitados no chão. "Nem sequer me entregaram o corpo para eu poder lavá-lo. Vou ter que levá-lo embora num saco de lixo."

O necrotério está transbordando. Os corpos são entregues às famílias no estado em que chegaram. Há cadáveres no corredor, em salas administrativas, no pátio, num galpão ao lado. São soldados e civis.

Parentes de soldado ucraniano morto aguardam pela liberação de seu corpo em frente ao necrotério de Mikolaiv - Nacho Doce - 16.mar.22/Reuters

No momento em que Riabko expressava sua angústia, ataques de artilharia sacudiram a terra debaixo de seus pés. Havia 132 corpos no necrotério naquele dia.

Mikolaiv está sendo bombardeada diariamente. As forças russas querem tomá-la porque a cidade está em seu caminho. A ponte Varvarisvski é o único meio em muitos quilômetros para se atravessar a larga foz do rio Buh. Se tomarem a ponte, os combatentes russos poderão avançar em sentido oeste pela costa do mar Negro em direção a Odessa, quartel-general da Marinha ucraniana e maior porto civil do país.

Para chegar à ponte, eles precisam passar pelos combatentes ucranianos, que até agora não cederam. E assim as tropas russas bombardeiam a cidade de modo indiscriminado, atingindo, segundo as autoridades locais, bairros, hospitais e mercados —pelo menos 12 civis teriam sido mortos nos ataques aéreos no fim de semana.

Mas há também uma recusa da população em se render. O lixo ainda está sendo recolhido. Uma família fechou sua empresa de decoração de interiores e agora percorre a cidade de carro levando comida a moradores necessitados. Um grupo de homens se uniu para tentar consertar um tanque russo danificado em combates, para que possa ser usado pelas forças ucranianas.

Militares ucranianos passam por um ônibus transformado em ambulância, em Mikolaiv, na Ucrânia
Militares ucranianos passam por um ônibus transformado em ambulância, em Mikolaiv, na Ucrânia - Nacho Doce - 15.mar.22/ Reuters

O movimento ainda é grande no Coffee Go, a algumas quadras do necrotério, apesar de suas janelas de vidro tremerem sob o choque dos disparos de artilharia. Quando os proprietários tentaram fechar o estabelecimento, os funcionários adolescentes se rebelaram, conta Viktoria Kuplevskaia, barista de 18 anos com uma mecha laranja no cabelo.

"Quisemos continuar trabalhando", diz. "Eu não tenho medo de nada."

No passado um centro de construção de navios para o Império Russo, Mikolaiv foi um dos primeiros lugares a ser atacado quando o presidente russo Vladimir Putin deu a ordem para a guerra, em 24 de fevereiro. As tropas russas já avançaram para dentro da cidade, mas foram enxotadas. Deixaram para trás as carcaças de blindados incendiados.

Ninguém sabe por quanto tempo os defensores ucranianos vão conseguir resistir. As forças russas atacaram a cidade por três lados, com tanques, artilharia e caças. Cada dia vem acompanhado de mais mortes, mas também de resistência.

Os governadores

"Bom dia. Somos da Ucrânia." Assim começa a mensagem de vídeo matinal habitual de Vitali Kim, governador regional. Seus vídeos de clima otimista no Facebook e no Telegram, que ele invariavelmente começa fazendo um sinal de paz e dando um sorriso rasgado, costumam ser vistos por 500 mil pessoas, aproximadamente o número de habitantes da cidade.

"Quando ele sorri, podemos nos deitar", diz Natalia Stanislavchuk, que vem entregando comida para pessoas necessitadas, como voluntária. "Se Kim fala que podemos dormir tranquilos, podemos dormir tranquilos."

Ele vai postando vídeos ao longo do dia, misturando mensagens tranquilizadoras a críticas às tropas russas. O objetivo é fortalecer os ânimos dos moradores de Mikolaiv, mesmo que os estrondos que eles ouvem soem assustadoramente perto.

"O que posso dizer? É o 17º dia da guerra, tudo vai bem e o moral é excelente", disse Kim no fim de semana, que começou com a notícia de um ataque aéreo em um bairro residencial. "Temos liberdade e estamos lutando por ela. Quanto a eles, só o que eles têm é escravidão. Queremos que todos nossos sonhos se realizem e estamos avançando nessa direção. Juntos rumo à vitória."

Os alvos

A bola de fogo iluminou o céu noturno como se fosse um amanhecer antes da hora. Era mais um dia de bombardeios russos. No dia 7, as forças russas haviam lançado um ataque na madrugada que arrancou os moradores da cama.

Um míssil de cruzeiro atingira um quartel da 79ª Brigada de Assalto ucraniana, cheio de soldados que dormiam. Oito foram mortos e outros estavam desaparecidos, seus corpos soterrados sob escombros.

Homem em meio a cadáveres de civis e soldados deitados em necrotério de Mikolaiv, cidade ucraniana às margens do Mar Negro que está cercada por tropas russas
Homem em meio a cadáveres de civis e soldados deitados em necrotério de Mikolaiv, cidade ucraniana às margens do Mar Negro que está cercada por tropas russas - Bulent Kilic - 11.mar.22 / AFP

Em um bairro de prédios residenciais, os moradores se alternavam entre tirar destroços de suas casas e correr para abrigos antibombas no subsolo, em meio ao bombardeio contínuo. Os mísseis explodiram janelas e espalharam estilhaços por móveis e eletrodomésticos.

"Vejam como o mundo russo nos está resgatando", diz Marina Babenko, mãe de duas crianças, ironizando a alegação de Putin de que a Rússia trava uma guerra de libertação. "Estávamos vivendo muito bem e tínhamos o que precisávamos. Agora eles estão bombardeando áreas residenciais, mulheres e crianças."

Aqueles que não se rendem

Duas idosas estavam sentadas num banco num parque da cidade, cuidando de três crianças pequenas, quando a conversa foi interrompida pelo som tenebroso de uma sirene de ataque aéreo. As mulheres continuaram a conversar. Passados alguns minutos, levantaram-se devagar, colocaram a criança menor num carrinho e foram embora sem pressa.

Os ataques de foguetes russos definem o ritmo da vida em Mikolaiv, mas muitos moradores da cidade estão determinados a tocar a canção numa clave de sua própria escolha.

Houve um êxodo nos últimos 15 dias. Grandes comboios de carros e ônibus congestionaram o trânsito na ponte Varvarisvski —uma rota de fuga e um prêmio que as forças russas cobiçam.

Mas, se entrarem na cidade, além das forças militares ucranianas, as tropas de Moscou terão que enfrentar pessoas como Dmitri Dmitriev, jornalista que deixou a caneta de lado para empunhar uma submetralhadora. Numa visita recente à Redação do site para o qual trabalha, havia mais armas que jornalistas. Caixas de munição se espalhavam pelo chão. "Estamos todos participando da resistência."

Os feridos

No Hospital Urbano Nº 3, Anna Smetana senta-se num leito, chorando. Ela é mãe, tem 40 anos e usa um vestido de cor pêssego com bolinhas pretas. Seu ombro e perna estão envoltos em bandagens ensanguentadas.

Dois dias antes, Smetana e seis de seus colegas de trabalho num orfanato local estavam indo de carro a um povoado para onde as crianças haviam sido retiradas quando a guerra começou. A cerca de 25 km da cidade, ela conta, um veículo blindado russo abriu fogo contra a van em que elas estavam.

Três das colegas de Smetlana morreram incineradas no incêndio que consumiu o veículo. Ela levou dois tiros no ombro e um na perna.

O diretor médico do hospital, Dmitri Kosolov, disse que Smetana era uma de 25 pacientes que estavam sendo tratados no local por ferimentos sofridos causados por bombardeios e disparos em apenas um dia. "Achávamos o coronavírus um pesadelo, mas isso é o inferno."

Os defensores

Um avião a hélice parado sobre a pista do pequeno aeroporto internacional de Mikolaiv está cheio de marcas pretas de disparos de metralhadora. Dentro do prédio do aeroporto, a área de triagem de segurança está completamente destruída.

Tropas russas tomaram o terminal por pouco tempo no início da guerra, mas foram expulsas pouco depois por combatentes ucranianos. Desde então as forças de Moscou não pararam de tentar retomar o aeroporto, para que seus aviões de transportes possam trazer tropas e equipamentos.

Mas, pelo menos até agora, os ucranianos não pararam de impedi-los.

"Temos uma posição muito forte. Estamos à espera deles", afirma o sargento Ruslan Khoda. "Não há nada inesperado. Sabemos quando estão chegando e de onde. E estamos prontos para lhes dizer ‘olá, rapazes russos estúpidos’."

Uma noite entediante

Na última segunda-feira o governador Kim estava em clima sombrio em sua mensagem de vídeo postada no início da noite. Ele reconheceu que a situação se agravara. "Não há sentido lógico nisso", falou. "Mas a iniciativa está do nosso lado, e estamos nos movimentando."

E com isso ele deu "boa noite" aos habitantes de Mikolaiv no 18º dia da guerra: "Desejo a todos uma noite entediante."

Tradução de Clara Allain

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