Descrição de chapéu União Europeia

Militares usaram em favelas do RJ blindados suíços exportados para uso humanitário

Eurodeputada vê nos episódios possível violação de tratado do qual Berna é signatária

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Youri van der Weide Beatriz Ramalho da Silva
Amsterdã | Lighthouse Reports

Foi no retorno de um encontro para assistir a um jogo de futebol em 2015 que a vida de Vitor Borges, então com 29 anos, mudou. Ele voltava para casa com amigos quando tiros disparados por um militar atingiram o carro em que ele estava. Vitor precisou ter uma perna amputada e ficou paraplégico.

O cabo do Exército que atirou não foi punido. Uma investigação da Lighthouse Reports agora joga luz sobre um detalhe menos conhecido dessa operação militar —que se deu no âmbito de um período de ocupação da Maré pelas Forças Armadas, entre abril de 2014 e junho de 2015— e de outras que impactaram favelas cariocas.

O trabalho, feito em parceria com Bellingcat e os veículos suíços RTS, RSI, SRF e NZZ, mostra que blindados usados entre 2014 e 2018 em ações militares no Rio de Janeiro (incluindo a que deixou Vitor paraplégico) haviam sido exportados para o Brasil inicialmente com propósito humanitário.

Militares em operação no Complexo da Maré em 2015 - Yasuyoshi Chiba - 1º.mai.2015/AFP

A mudança na aplicação vai de encontro ao Tratado sobre o Comércio de Armas, ratificado pela Suíça, que estabelece que armas não devem ser comercializadas em países nos quais possam contribuir com abusos e violações de direitos humanos. O Brasil também é signatário do texto.

A Mowag (hoje parte da General Dynamics European Land Systems) confirmou em nota que 30 veículos Piranha 3C foram exportados entre 2007 e 2014 com a intenção de serem usados pelas Forças Armadas em missão humanitária das Nações Unidas no Haiti —o Exército brasileiro chefiou a ação da ONU de 2004 a 2017.

A análise de vídeos e fotografias obtidas em fontes abertas, porém, revela a aplicação dos veículos suíços em operações policiais dentro de favelas, por vezes transportando forças do Bope (Batalhão de Operações Especiais). Em algumas dessas ações, disparos de militares atingiram civis, em um contexto de violação de direitos humanos.

O Instituto Sou da Paz requisitou informações sobre os blindados da Mowag às Forças Armadas, que confirmaram que eles foram usados ativamente em operações militares no Rio de Janeiro entre 2013 e 2018.

O Bope chegou a ser denunciado pela ONG Human Rights Watch como responsável por execuções extrajudiciais. "A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. A lei é feita para matar pessoas negras, pobres e das favelas", disse Irone Santiago, mãe de Vitor Borges, ao canal suíço RTS.

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que, em 2020, a polícia no Rio de Janeiro matou 6.146 pessoas, 79,1% das quais negras e 74,3% com menos de 30 anos.

De acordo com vídeos analisados e geolocalizados pela equipe da Lighthouse Reports, em maio de 2015 um veículo Mowag também foi usado em uma operação no Complexo da Maré em que militares dispararam fuzis M-16. Uma das imagens mostra um integrante das forças do Bope saindo do blindado.

A ocupação do conjunto de favelas, batizada de Operação São Francisco, levou à morte de ao menos 15 pessoas. Entre elas estava Jefferson Rodrigues, então com 18 anos —fotografias e vídeos analisados pela reportagem mostram o Piranha da Mowag a poucos metros de distância do corpo do jovem, pouco depois de ele ter sido baleado.

"É chocante ver evidências de veículos armados suíços sendo usados pela polícia brasileira no contexto de abuso de direitos humanos contra os mais pobres e vulneráveis", diz Hannah Neumann, deputada alemã do Parlamento Europeu. "Os que tomaram a decisão da exportação na Suíça podem não ter pretendido essa cumplicidade, mas o caso demonstra a facilidade com que armas ou veículos armados podem ser mal utilizados."

Em 2014 e 2019, duas inspeções do Secretariado Suíço de Assuntos Econômicos no Brasil não encontraram anomalias no uso dos blindados importados. Questionada pela reportagem, a Mowag disse apenas que não compete à empresa avaliar e autorizar a exportação de armas. "Isso é um assunto para os políticos", afirma a nota.

Hannah Neumann destaca a preocupação com o tema dado o contexto da gestão Jair Bolsonaro (PL). "Apesar de não haver provas de que as armas são ainda hoje usadas em operações policiais semelhantes, há um risco de que isso possa acontecer no futuro, dada a documentação de violações de direitos humanos por forças policiais."

Na sequência de medidas do governo federal aprovadas para flexibilizar o acesso a armas, desde 2020 a importação desse material também aumentou no Brasil.

O armamento suíço é apenas um exemplo de produtos de origem europeia que acabam no Brasil, apesar de regras de exportação rigorosas. Segundo a Unroca, base de dados ligada às Nações Unidas, a Áustria é outro local proeminente na exportação de armas ao país —de acordo com o Ministério da Economia, em 2020 Viena foi o maior fornecedor de revólveres para o Brasil.

O aumento na circulação de armas têm sido alvo de críticas por parte de organizações como o Sou da Paz e a Fogo Cruzado —a plataforma colaborativa, que usa a tecnologia para produzir e divulgar dados abertos sobre violência armada, notou que em 2021 foi registrado um aumento de 15% nos tiroteios nas favelas do Rio de Janeiro.

"Hoje é muito mais fácil para a polícia realizar uma compra de armas no exterior, com menos burocracia por parte do Exército", diz Bruno Langeani, coordenador do Sou da Paz. "E o discurso do presidente serve como incentivo público para legitimar a violência policial."

O instituto lançou um estudo com a organização Terre des Hommes para levantar informações sobre armas estrangeiras no contexto de uso policial ou militar e espera que os resultados da investigação pressionem governos europeus para suspender exportações de armas para instituições brasileiras que promovam violações sistemáticas de direitos humanos.

A Marinha, responsável pela importação dos blindados Piranha, destacou em nota que a estrutura dos veículos não permite que a tropa realize disparos quando embarcada. Segundo o órgão, o uso no Haiti "garantiu excelente proteção para as forças brasileiras nas ações de estabilização, principalmente nos momentos em que sofriam atentados de bandos armados".

Fora do Haiti, onde permaneceram até o encerramento da missão, em outubro de 2017, as viaturas demonstraram, de acordo com a nota da Marinha, "perfeita aplicabilidade às ações de Garantia da Lei e da Ordem determinadas pelo governo federal [no Brasil] com diferentes propósitos, como segurança de grandes eventos, proteção de dignitários, apoio aos órgãos de segurança pública nas proximidades de áreas ameaçadas pelo crime organizado, dentre outros".

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