Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Mulheres ucranianas, antes vetadas no Exército, combatem russos na linha de frente

Elas são 15% dos militares do país; voluntárias que lutaram no Donbass em 2014 pressionaram por reconhecimento e mudança na lei

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São Paulo

Quando lutou contra separatistas russos na região do Donbass em 2014, a ucraniana Andriana Susak cobria a cabeça com uma balaclava para esconder seu gênero, já que mulheres estavam proibidas de combater. Hoje oficial do Exército, ela exibe abertamente nas redes sociais o uniforme camuflado cheio de insígnias —e posta como homenagem fotos de outras militares que não têm medo de mostrar o rosto.

Até 2016, as Forças Armadas da Ucrânia não aceitavam mulheres em posições de combate, pois eram regidas por leis da era soviética, que proibiam a elas funções que afetassem a saúde reprodutiva. No Donbass, Susak se registrou como costureira voluntária, mas desafiou os comandantes e foi para a linha de frente. Quando engravidou, em 2015, permaneceu nas trincheiras até os cinco meses de gestação.

Irina Sergueieva, primeira mulher voluntária a ser admitida nas forças de defesa territorial da Ucrânia
Irina Sergueieva, primeira mulher voluntária a ser admitida nas forças de defesa territorial da Ucrânia - Sergei Supinsky - 11.mar.22/AFP

Ela é uma das retratadas no documentário "Batalhão Invisível" (2017), sobre seis pioneiras que lutaram no front como voluntárias no leste da Ucrânia, registrando-se como cozinheiras, secretárias e enfermeiras. Dirigido por três mulheres, o filme foi parte de uma campanha mais ampla que contribuiu para que a Ucrânia passasse a permitir, em 2016, o alistamento feminino em 62 posições de combate.

Hoje, elas são ao menos 32 mil, de acordo com números do fim de 2021, ou 15% de todo o Exército ucraniano —proporção aparentemente maior do que a dos oponentes russos; em maio de 2020, o ministro da Defesa de Moscou disse que havia cerca de 41 mil mulheres alistadas, 4,2% do total.

O perfil das mulheres nas Forças Armadas de Kiev é variado, segundo Anastasiia Banit, do Instituto para Programas de Gênero, ONG responsável pelo documentário "Batalhão Invisível" e por outras iniciativas em prol de militares ucranianas. "Quando a Rússia atacou a Ucrânia em 2014, nosso Exército não estava pronto, então precisava de muitos voluntários, o máximo possível. É por isso que muitas pessoas comuns que não tinham nada a ver com a esfera militar, mulheres também, ingressaram", disse à Folha.

"Havia mulheres jovens e velhas, com experiências profissionais extraordinárias em tempos de paz ou sem experiência nenhuma, com filhos e sem, casadas e solteiras. Estamos aqui para dar apoio a todas."

Segundo ela, nos últimos seis anos, o contingente feminino dobrou. Mudanças na legislação, impulsionadas pelos movimentos de veteranas, contribuíram para tanto.

Em 2018, o governo aprovou uma lei que garante às mulheres direitos iguais aos dos homens nas Forças Armadas. Em 2019, elas passaram a poder estudar em academias militares, nas quais são treinadas para serem oficiais, e no mesmo ano aquelas que lutaram no leste ucraniano em 2014 foram reconhecidas como veteranas, com acesso a benefícios sociais. Em 2020, os uniformes militares passaram a contar com roupas de baixo femininas, em vez das masculinas que eram padrão.

Hoje, algumas bases militares possuem consultoras de gênero, que trabalham para convencer oficiais mais conservadores a seguirem políticas de equidade em seus batalhões. Mas casos de discriminação persistem: em agosto, o Ministério da Defesa queria que as mulheres marchassem em um desfile de salto alto, em vez de botas. Parlamentares de oposição e grupos feministas protestaram.

"Os saltos sempre foram incluídos nos uniformes militares femininos na Ucrânia, mas só agora vemos que as pessoas começam a entender como esses elementos estereotipados são desnecessários", afirma Banit. "Alguns postos ainda são proibidos. Elas enfrentam o sexismo de chefes e companheiros, às vezes da família e da sociedade. Tivemos avanços, mas livrar-se de preconceitos em uma esfera tão masculina é uma longa jornada."

Segundo ela, até recentemente a ONG vinha trabalhando para prevenir a violência sexual no Exército, com a criação, por exemplo, de um atendimento virtual para apoio psicológico e canal de denúncia para casos de assédio, violência ou abuso sexual. Hoje, a equipe lida com necessidades mais emergenciais, que surgiram após a invasão russa do fim de fevereiro.

No fim de 2021, quando a Rússia começou a mobilizar tropas na fronteira, o Ministério da Defesa ucraniano pediu que mulheres de 18 a 60 anos se alistassem, e muitas receberam treinamento militar. Cursos de autodefesa em cidades do leste também passaram a ser mais procurados por mulheres.

A agência de notícias Reuters acompanhou uma mãe de 44 anos, gerente de uma construtora, e uma estudante de direito de 23 que passavam os fins de semana aprendendo tiro, artes marciais e primeiros socorros em um desses cursos na cidade de Kharkiv. Segundo o instrutor, um veterano de guerra, a demanda pelas aulas aumentava a cada novo indício de agressão russa.

Primeira voluntária a ser contratada como militar na Ucrânia, em 2017, a tenente Irina Sergueieva hoje treina novos combatentes em uma garagem subterrânea em Kiev. Em entrevista à AFP, ela contou que nos primeiros dias após a invasão russa, muitas mulheres —e homens também— se ofereceram para pegar em armas e defender o país, mas sem entender de fato o que teriam que enfrentar. "Percebi que muitas dessas jovens estavam romantizando um pouco tudo isso", afirmou, complementando que teve que dizer a algumas delas, "gentilmente", que 'não, você pode não ser preparada para isto'."

Em um conflito marcado pela forte propaganda nas redes sociais de ambos os lados, mulheres também têm sido exibidas como heroínas em posts. A primeira-dama ucraniana, Olena Zelenska, homenageou-as com a foto de uma militar em uma trincheira, em sua conta com 2,5 milhões de seguidores no Instagram.

"Antes da guerra, escrevi que a Ucrânia tem 2 milhões de mulheres a mais do que homens. Essa estatística agora assumiu um significado totalmente novo, porque significa que nossa oposição também tem um rosto feminino", escreveu. Outro exemplo é o vídeo-selfie de uma soldado não identificada que viralizou no Twitter. Caminhando, com a luz do sol ao fundo, ela se emociona e diz: "Ainda estou viva, o sol está brilhando, os pássaros estão cantando. Tudo vai ficar bem. Longa vida à Ucrânia".

A comoção gerou também notícias falsas, como a de que a miss Ucrânia Anastasiia Lenna teria se juntado ao Exército para lutar contra os russos. O boato ganhou força quando viralizou uma foto que ela publicou nas redes segurando uma arma. Depois, ela própria postou um vídeo esclarecendo que a arma era de airsoft, hobby que já tinha sido mencionado.

"Não sou uma militar. Sou apenas uma mulher, um ser humano normal", disse, acrescentando que a intenção era "inspirar as pessoas" e "mostrar que as ucranianas são fortes, confiantes e poderosas".

Para Anastasiia Banit, o melhor Exército é aquele "com profissionais que realmente querem proteger seu país e sabem o que estão fazendo", independentemente do gênero. "Cortar as mulheres desse campo significa diminuir o número de membros potencialmente habilidosos e valiosos. O Exército que inclui mulheres é a única maneira que um Exército deve ser."

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