Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Ucraniano tenta voltar a Mariupol para resgatar parentes que não sabe se estão vivos

Oleg, sem contato com a ex-mulher e o filho desde 2 de março, quer retornar à cidade descrita por muitos como 'inferno'

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Zaporíjia (Ucrânia)

Marcados com a palavra "crianças" em folhas de sulfite no para-brisa, centenas de carros com ucranianos formavam em Zaporíjia uma fila em direção a Mariupol, há quatro semanas cercada por tropas russas.

Frequentemente descrita por deslocados pelo conflito como o inferno, já que a cidade no sudeste da Ucrânia vem sendo bombardeada com forte intensidade pelo Exército moscovita, Mariupol é estratégica porque, caso tomada, formaria um caminho terrestre da Crimeia, anexada em 2014 pelos russos, ao Donbass, região no leste do país onde estão Lugansk e Donetsk, que concentram separatistas pró-Rússia.

Veículo com civis que tentam retornar a Mariupol a partir de Zaporíjia para resgatar parentes e amigos
Veículo com civis que tentam retornar a Mariupol a partir de Zaporíjia para resgatar parentes e amigos - André Liohn/Folhapress

Os seguidos fracassos nas negociações entre Moscou e Kiev para estabelecer um cessar-fogo na cidade impediram não apenas que muitos civis deixassem Mariupol, mas também inviabilizaram o trabalho de ONGs humanitárias, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, sem condições de atuar na área.

Segundo relatos dos que conseguiram fugir, a população que ficou em Mariupol vive sob constantes ataques que já destruíram a maior parte dos prédios e mataram um número ainda desconhecido de pessoas —reportagem do New York Times, citando uma entrevista de Piotr Andriuchtchenko, conselheiro do governo local, afirmava que até 15 de março 2.400 civis mortos na cidade haviam sido identificados.

A cifra, já elevada, uma vez que as Nações Unidas contabilizam até o momento a morte de 925 civis em todo o país —a organização admite que o cálculo subrepresenta o número real—, também deve espelhar apenas uma pequena parte dos óbitos em Mariupol. A estimativa de Andriuchtchenko, que não apresentou evidências para basear sua afirmação, é de que o total pode chegar a 20 mil.

Mesmo diante desse cenário, civis que conseguiram fugir da cidade agora tentam voltar para resgatar familiares. Para isso, levam mantimentos, medicamentos, roupas, água e até ferramentas, como pás, enxadas e marretas, úteis para escavar entre os escombros de construções destruídas por bombardeios.

Um deles é Oleg —ele não deu o sobrenome—, 47, que nasceu em Mariupol e conseguiu tirar de lá parte de sua família, mas não todos os parentes. Agora, em sua terceira tentativa, quer buscar a ex-mulher, o filho, a cunhada e o filho dela. "A única coisa que tenho em mente é que eu preciso chegar lá. Não importa como."

Pode explicar o que o senhor vai fazer? Eu levei parte da minha família de Mariupol para Dnipro no último dia de fevereiro e estava voltando para retirar o restante dos meus parentes de lá, mas falhei, porque a cidade estava bloqueada. Agora, nos últimos três dias, tentei deixar Zaporíjia para chegar a Mariupol de alguma forma e encontrar uma maneira de resgatar minha família. É minha terceira tentativa, as duas anteriores fracassaram porque ninguém nos deu autorização para sair de Zaporíjia.

Dessa vez nós não vamos seguir o comboio oficial, vamos avançar por conta própria, sem nenhum registro, porque dizem que assim pode dar certo. Então, daqui a cinco minutos nós vamos partir em cinco carros. Se falharmos, vamos tentar amanhã outra vez e no dia depois de amanhã também. Porque as pessoas que estão lá estão sofrendo de fome, sem água, temos de ajudá-los o quanto antes.

O senhor está em contato com as pessoas que vai tentar resgatar? Não. Não sei onde elas estão, se estão vivas ou não. Estou sem contato com elas desde o dia 2 de março. Não há conexão nem outras formas de se comunicar com elas. Como disse, não sei nem se elas ainda estão vivas ou não.

Quem da sua família ainda está em Mariupol? Minha ex-mulher, meu filho, minha cunhada e o filho dela.

O senhor está em um carro pequeno. Como vai transportá-los? Vou espremê-los no carro. Vou jogar fora quaisquer pertences, para garantir que as pessoas, antes de qualquer coisa, caibam no carro.

O senhor não esteve em Berdiansk ou em outras áreas sob controle russo. Como está se preparando para lidar com os militares russos? Vou me manter calmo, não vou me comportar de modo agressivo. Nós todos somos seres humanos, acho que eles vão entender a minha situação, entender que nós temos de resgatar nossos entes queridos. Eles também têm família, eu suponho. De qualquer forma, não tenho outra opção, eu preciso chegar lá, chegar até a minha família e tirá-la desse inferno.

O que passa pela sua cabeça neste momento, minutos antes de ir para Mariupol? A única coisa que tenho em mente é que eu preciso chegar lá. Não importa como. É a primeira e a última coisa na minha cabeça. Minha esposa atual está em Dnipro, esperando por mim, prestes a ter um ataque cardíaco por saber que eu estou indo para esse inferno, mas não há outra pessoa além de mim que vá resgatar minha família.

Quanto tempo estima levar até Mariupol? Imprevisível. Algumas pessoas chegam lá em três horas, outras levam dois dias. Estou preparado fisicamente para isso. Eu não sei nem se vou conseguir sair de Zaporíjia, há rumores de que os nossos militares não nos deixam sair sem uma permissão oficial, algo que tentei obter durante dois dias seguidos —e não consegui. Recorri a todas as formas possíveis para ir até Mariupol e, se eu não conseguir outra vez, vou tentar no dia seguinte de novo.

O senhor trabalha com o quê? Trabalho para uma organização humanitária internacional. Não quero dizer o nome da organização, mas antes eu trabalhei ajudando o que chamamos de deslocados internos, e agora meus familiares se tornaram deslocados internos também. Eu continuo a trabalhar, continuo a ajudar pessoas e vou seguir fazendo isso, mas antes preciso resgatar as pessoas que eu amo.

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