EUA separam crianças da Ucrânia de seus responsáveis na fronteira com o México

Medida usada contra tráfico de menores da América Central traumatiza jovens que fogem da guerra

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Miriam Jordan
Los Angeles | The New York Times

Irina Merejko convenceu sua irmã na Ucrânia que o sobrinho deveria ir viver com ela em Los Angeles até o término da guerra. E então viajou meio mundo para buscá-lo. "Falei a ele que seriam férias na Califórnia. Que iríamos à Disney, ao Universal Studios, à praia."

O garoto, Ivan Ierechov, 14, acompanhou Irina a Tijuana, no México, no início do mês, engrossando as fileiras de milhares de ucranianos que aguardam na fronteira a permissão para entrar nos Estados Unidos.

Para evitar possíveis problemas, ela levava uma procuração autenticada em cartório atestando que Ivan havia sido entregue aos cuidados da tia. Mas um funcionário americano informou que o garoto não poderia entrar no país —porque ela não era a mãe.

Irina Merejko mostra uma foto de seu sobrinho, Ivan Ierechov, 14 - Mark Abramson -17.abr.22/The New York Times

"Nos disseram que passaríamos um ou dois dias separados", recorda Irina. Ela abraçou Ivan quando o entusiasmo inicial dele virou consternação. Dez dias se passariam até ela descobrir seu paradeiro.

Devido a uma lei que visa impedir crianças migrantes de serem traficadas, dezenas de jovens ucranianos estão sendo separados de parentes, amigos ou irmãos mais velhos com quem viajaram para a fronteira sul dos EUA. Em vigor desde 2008, a lei requer que as autoridades de fronteira coloquem menores desacompanhados em abrigos governamentais, onde devem permanecer até que os guardiães tenham sido examinados e aprovados.

A lei tem sido implementada principalmente com crianças da América Central, grupo principal de menores a chegar nos últimos anos. Mas elas normalmente têm conhecimento da lei e sabem que serão colocados sob custódia temporária. Para as ucranianas, serem separadas de quem cuida delas é uma virada inesperada e chocante na fuga de uma zona de guerra.

O caso difere dos de 2018, quando a administração Trump intencionalmente separou crianças de seus pais migrantes no intuito de desencorajar a travessia da fronteira.

"Imagine a situação", diz Erika Pinheiro, advogada que presta assessoria ao grupo de apoio a migrantes Al Otro Lado, em Tijuana. "Os pais de algumas dessas crianças morreram ou estão combatendo. Elas estão traumatizadas pela guerra e pela viagem. Então são separadas dos parentes, sem entender por que, e enviadas a um abrigo onde os funcionários não falam sua língua."

Pinheiro afirma que é essencial proteger crianças de potenciais traficantes de pessoas, mas que um processo de vistoria mais cuidadoso na fronteira poderia reduzir a necessidade de separações traumáticas.

As autoridades americanas não divulgam o número de crianças ucranianas separadas de seus cuidadores, mas voluntários que trabalham com refugiados disseram ter contado ao menos 50. Segundo eles, até 20 crianças e adolescentes por dia têm chegado a Tijuana com alguém que não é o pai ou a mãe.

O Departamento de Segurança Interna disse em comunicado que a lei contra o tráfico de pessoas define qualquer criança que não esteja com pai, mãe ou guardião legal como desacompanhada e requer que ela seja transferida a um abrigo do governo para receber atendimento e ser examinada para detectar qualquer sinal de tráfico de pessoas. "Qualquer guardião potencial precisa por lei ser checado cuidadosamente antes de ser posto em contato com a criança novamente."

Defensores de migrantes reconhecem que no meio do caos da guerra existe um risco de crianças ficarem vulneráveis a serem traficadas e exploradas, mas dizem que as autoridades americanas estão implementando a lei de modo inconsistente, semeando confusão e sofrimento.

Em alguns casos uma criança que viajava com um irmão adulto foi transferida para um abrigo, mas isso nem sempre ocorre. No mês passado, Molly Surajski, filha de imigrantes ucranianos, acompanhou Liza Krasulia, 17, cuja mãe é amiga íntima da família, da Polônia, para onde a adolescente tinha ido para escapar da guerra, até a fronteira sul dos EUA.

Molly, que mora em Nova York, conta que consultou uma advogada de imigração, que não previu que elas teriam problemas porque levavam uma carta autenticada da mãe de Liza autorizando Molly a cuidar dela. Mas, quando elas chegaram à fronteira, em 30 de março, ouviram que Liza seria mantida em custódia por até dois dias.

"Disseram: ‘Ela será mais bem tratada do que nós’", diz Molly. Liza ficou chocada e começou a chorar. "Falei para ela: ‘Não se preocupe. Não vou a lugar algum sem você'."

Molly se hospedou num hotel em San Diego e recebeu uma ligação de Liza, que a essa altura já estava ainda mais aflita. Funcionários haviam confiscado seu telefone, sua bagagem, seu livro e até o cadarço dos tênis. Ela estava dividindo uma cela com 25 mulheres e crianças da Ucrânia, da Rússia e de outros países, todas dormindo no chão e tendo apenas cobertores de alumínio.

Passaram-se alguns dias até que Molly descobriu que Liza fora transferida para um abrigo para crianças e adolescentes migrantes no Bronx, em Nova York.

Irina Merejko e seu marido, Vadim Merejko, na sua casa na Califórnia, preparam documentos a serem enviados para oficiais de imigração - Mark Abramson -17.abr.22/The New York Times

Ela entregou 40 páginas de documentos, formulários e impressões digitais. Ficou aguardando a aprovação para responsabilizar-se oficialmente por Liza. No dia 18, foi informada que a jovem seria autorizada a deixar o abrigo no dia seguinte, três semanas depois de elas terem atravessado a fronteira. "Entendo a necessidade de examinar os cuidadores, mas tem que haver um jeito melhor de o governo fazer isso sem traumatizar as crianças ainda mais", diz Molly,

Casey Revkin, cofundadora de uma ONG que ajuda famílias migrantes com a reunificação, afirma que há anos crianças e adolescentes centro-americanos vêm sendo desnecessariamente afastados de avós, pais adotivos e irmãos.

Pinheiro observa que durante a retirada das tropas ocidentais do Afeganistão, o governo americano lançou uma diretiva instruindo autoridades a permitirem que crianças ficassem com cuidadores que não eram seus pais e com quem tivessem entrado no país, em lugar de serem transferidas para abrigos.

Os abrigos para os quais os ucranianos estão sendo levados são mantidos por uma agência federal distinta, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos —que, em comunicado, disse que não cabe a ela fazer determinações sobre imigração. "Nosso papel é oferecer atendimento e proteção às crianças enquanto estão sob nossa custódia temporária."

No caso de Irina Merejko, que vive nos EUA desde 2014, a família decidiu tentar mandar Ivan para Los Angeles, onde o garoto estaria em segurança, sem aguardar até os EUA começarem a emitir autorizações para refugiados fazerem voos diretos. Desde que a guerra começou, estima-se que 5.000 ucranianos entraram nos EUA pelo México, que não exige vistos para cidadãos da Ucrânia.

Irina gastou US$ 7.000 (R$ 33,3 mil) em passagens, tirou licença de seu emprego e foi buscar o sobrinho. Eles se encontraram no oeste do país, depois de Ivan conseguir embarcar num trem que retirava pessoas de Kharkiv. "Pensei que estava fazendo a coisa certa, que seria o único jeito de salvar o menino."

De Madri eles embarcaram para Monterrey, no México, e em 6 de abril foram para Tijuana, lotada de ucranianos aguardando para se apresentar no posto de controle da fronteira. Dois dias mais tarde, os funcionários da alfândega disseram que eles teriam que ser separados, por um ou dois dias.

"Vai ficar tudo bem", disse Irina a Ivan. No dia seguinte seu telefone tocou, e um agente entregou o aparelho a Ivan. "Mãe, mãe, é você?", ele perguntou, pensando que falava com a Ucrânia.

A tia ficou com o coração doído. No telefonema controlado de 60 segundos, o garoto disse que ainda estava na fronteira, e o agente informou que Irina devia aguardar outra ligação em breve. Passaram-se dias, ninguém telefonou, e a ansiedade dela foi crescendo.

Irina descobriu o número de uma linha direta para famílias que tentam localizar crianças, e um funcionário confirmou que Ivan estava no sistema. Ele disse que ela seria contatada por uma assistente social.

"Não recebi informação nenhuma sobre como ou onde ele está", conta Irina. Passaram-se dias, ela voltou a ligar e uma telefonista lhe pediu paciência. Disse que poderia levar 20 ou 30 dias para Ivan ser solto, que o processo ainda nem sequer tinha começado.

Num telefonema angustiado, sua irmã, Katerina, disse que estava arrependida de ter mandado o único filho para longe.

Na última segunda-feira, o marido de Irina, Vadim, enfim recebeu uma ligação de Ivan, que contou que estava num abrigo na Califórnia. Uma assistente social disse que eles podiam enviar os documentos para processar a liberação do garoto, mas que não havia notícia de quando ele poderia sair do abrigo.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.