Crise climática seca lago em Las Vegas, revela corpos e dispara mistério

Descobertas no maior reservatório artificial de água dos EUA aguçam curiosidade por passado ligado à máfia

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Simon Romero
Las Vegas | The New York Times

É aquele mafioso que desapareceu depois de roubar o cassino Stardust. Não, é o gerente de um resort à beira do lago que era caçado pela máfia de Chicago. Ou seria obra de uma gangue de motoqueiros? Talvez ainda alguém tenha caído de um barco depois de exagerar na bebida.

Desde que os corpos começaram a vir à tona no lago Mead neste mês —o primeiro em um barril, o segundo semienterrado na areia, ambos expostos devido à queda no nível de água—, multiplicam-se em Las Vegas teorias sobre quem eram as pessoas, como foram parar no maior reservatório artificial do país e qual será a próxima descoberta.

A decomposing barrel on May 11, 2022, along the shores of Lake Mead in Nevada, near the spot where a victim who appeared to die from a gunshot wound was discovered in another barrel. As climate change fuels grim discoveries across the West, Las Vegas is awash in bets on the identity of a suspected murder victim dumped in a barrel. (Joe Buglewicz/The New York Times)
Barril em decomposição às margens do lago Mead, em Nevada, perto de onde um corpo baleado foi encontrado dentro de outro barril - Joe Buglewicz - 11.mai.22/The New York Times

Lynette Malvin, 30, encontrou o segundo corpo com a irmã quando praticava stand up paddle. Num primeiro momento elas pensaram que haviam encontrado a ossada de um carneiro. "Foi só quando vi o maxilar com uma obturação prateada que falei ‘epa, isso é humano’ e comecei a me assustar", conta.

A descoberta de restos mortais humanos sempre é fonte de tragédia e potencial sofrimento para os entes da pessoa que morreu, especialmente quando o corpo revela que a morte foi violenta. Mas em Las Vegas, onde a história criminosa é algo que atrai visitantes, a descoberta no Mead provocou fascínio macabro e levou detetives amadores a entrarem em ação.

Os achados sinistros foram feitos em meio às duas décadas mais secas em mais de mil anos no sudoeste dos Estados Unidos, com rios e lagos esturricados pela estiagem oferecendo uma surpresa após outra.

No reservatório Elephant Butte, no Novo México, pessoas que participavam de uma despedida de solteiro toparam com um crânio fossilizado de mastodonte de milhões de anos atrás. Em Utah, no ano passado, o recuo das águas do lago Powell revelou um carro que caíra de um penhasco de 200 metros, matando o motorista. E agora arqueólogos têm a oportunidade de estudar habitações indígenas que emergiram.

Em Las Vegas, a obsessão suscitada pelos restos mortais no lago Mead soma a ansiedade em relação às reservas de água locais, que não param de encolher, ao fascínio com o modo como mafiosos converteram a cidade num paraíso cintilante dos jogos de azar —onde caçadores por prazer boiam por rios preguiçosos e brincam em piscinas colossais em meio à paisagem do deserto de Mojave.

O Mead está com apenas 30% da capacidade, o nível mais baixo desde que foi preenchido, durante a Grande Depressão. Isso assusta lugares como Los Angeles, Phoenix e Tucson, que também recebem água do reservatório. Neste mês autoridades federais anunciaram que vão adiar a liberação de água do rio Colorado para o lago, o que fará o nível cair ainda mais.

Jennifer Byrnes é antropóloga forense que presta consultoria ao Instituto Médico-Legal do condado de Clark. Ela diz que a elevação da temperatura pode reformular sua profissão. Estiagens prolongadas e outras mudanças à paisagem possibilitam mais descobertas tenebrosas e exigem planejamento para enfrentar eventos que podem provocar grande número de vítimas, como ondas de calor, tempestades e incêndios. "A mudança climática vai afetar nosso campo de atuação diretamente nos próximos anos."

Em alguns casos, isso significa ajuda para solucionar mistérios antigos. Em 2014, quando uma picape contendo um cadáver foi encontrado num lago no Texas cujo nível de água havia caído, legistas usaram fichas odontológicas para identificar uma mulher que estava desaparecida desde 1979.

Mesmo assim, segundo Byrnes, os restos mortais no lago Mead podem ser especialmente difíceis de identificar. O reservatório é tão grande que suas correntezas podem despedaçar um cadáver ou fazer com que se desloque para longe do ponto onde a pessoa se afogou ou foi jogada. E animais necrófagos, como insetos aquáticos, caranguejos, peixes e aves, podem complicar esses esforços de identificação.

Nada disso está levando detetives amadores a desistirem de estudar pistas nos casos arquivados que agora estão suscitando mais interesse em Los Angeles. Até aqui, investigadores da polícia disseram que não preveem detectar sinais de crime no corpo encontrado pelas remadoras.

Mas fontes do Departamento de Polícia Metropolitana de Las Vegas disseram que a vítima no barril parece ter morrido em decorrência de um disparo de uma arma de fogo, provavelmente em meados dos anos 1970 ou início dos anos 1980, a julgar por suas roupas.

Nessa época, ao mesmo tempo que as autoridades locais buscavam minimizar a influência de grupos criminosos organizados, mafiosos de cidades do Meio-Oeste tinham influência enorme na região. Hoje, o papel da máfia em Las Vegas é considerado insignificante, mas a nostalgia emerge como fonte de verba.

Por US$ 119,95 (R$ 576), visitantes podem fazer uma "tour mafiosa" que passa por locais onde ocorreram uma explosão num carro e outras atividades do submundo. No Mob Museum (museu da máfia), turistas com cerveja na mão passeiam por exposições que descrevem o passado ensanguentado da cidade.

Como o museu deixa claro, não era inusitado a máfia usar barris como método para se desfazer de cadáveres. Em coluna no jornal The Nevada Independent, o autor John L. Smith escreveu que a descoberta no lago Mead também evoca lembranças de um caso arquivado envolvendo Johnny Papas, morador de Chicago que desapareceu em 1976.

Pappas, cujos vínculos com o submundo foram mencionados quando ele desapareceu, era gerente de um resort à beira do lago que recebia ajuda de um fundo de pensão do Sindicato dos Caminhoneiros —ele também se envolveu na política democrata. "Na época, Las Vegas era uma cidade muito menor, onde metade das pessoas tinha vínculos com a máfia ou queria que você pensasse que tinham", disse Smith.

Há várias outras teorias. O policial aposentado David Kohlmeier, hoje podcaster, ofereceu uma recompensa de US$ 5.000 (R$ 24 mil) a quem encontrar mais restos mortais no lago Mead. Segundo ele, as áreas podem ter sido "lixões de corpos" ligados a outros crimes envolvendo gangues.

Não é de hoje que o lago Mead está ligado a acidentes e crimes, mas o historiador Michael Green, 57, que cresceu em Las Vegas, observa que os mafiosos frequentemente preferiam cometer assassinatos em estilo de execução longe da cidade, para tentar proteger os cassinos de publicidade negativa.

Ele tem a própria teoria sobre o corpo encontrado no barril. Ela envolve Jay Vandermark, supervisor de máquinas caça-níqueis no cassino Stardust que entrou num esquema para furtar lucros das máquinas. Vandermark, que também teria roubado de seus chefes mafiosos, desapareceu em 1976.

"Acho que nunca encontraram seu corpo."

Tradução de Clara Allain

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