Leis estaduais com quase 200 anos agora podem determinar onde o aborto é legal nos EUA

Decisão da Suprema Corte abriu brecha para que regras do período da Guerra Civil voltem a valer nos estados

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Julie Bosman
The New York Times

O aborto já se tornou ilegal ou se tornará em breve em mais de 12 estados americanos que aprovaram chamadas "leis de gatilho", que autorizaram sua proibição assim que a Suprema Corte tomou uma decisão derrubando a garantia constitucional ao procedimento na sexta-feira (24).

Mas os direitos ao aborto estão em risco em outros estados devido a medidas mais antigas que criminalizam a prática, algumas delas redigidas antes da Guerra Civil Americana (1861-1865).

Embora essas proibições tivessem sido consideradas dormentes após a decisão da ação Roe vs. Wade, em 1973, não chegaram a ser revogadas pelos Legislativos estaduais —e poderão ser implementadas agora. Dois dos estados em questão, Michigan e Wisconsin, têm governadores democratas que são favoráveis ao acesso ao aborto, e sondagens indicam que a maioria de seus habitantes também o são. Mas seus Legislativos, controlados por republicanos, não mostraram interesse em revogar as leis antigas.

Mulher de punho levantado em frente a faixa segurada por manifestantes
Manifestantes favoráveis ao direito ao aborto fazem protesto em Washington, nos EUA - Elizabeth Frantz - 26.jun.22/Reuters

"Cada promotor público do estado terá o poder de potencialmente investigar abortos espontâneos para testar os limites da lei e verificar se podem colocar médicos na prisão", disse a senadora estadual democrata Kelda Roys, do Wisconsin. "Isso dificulta muito a vida dos médicos e abre a porta para uma enxurrada de situações terríveis."

A importância adquirida repentinamente por leis redigidas antes de as mulheres terem o direito ao voto está levando legisladores, ativistas e clínicas de aborto a fazer uma esforço para analisar suas implicações rapidamente. No Wisconsin, clínicas em Milwaukee e Madison já haviam parado de marcar procedimentos de aborto para esta semana, antevendo a decisão da Suprema Corte. Quando a decisão foi anunciada, na manhã da sexta-feira, todas as clínicas do estado pararam de realizar abortos.

O promotor público do condado de Dane, Ismael Ozanne, assinalou na sexta-feira que não vai implementar a lei do Wisconsin que criminaliza o aborto, sugerindo a possibilidade de surgir uma série de situações distintas, com o aborto sendo processado de formas diferentes entre um condado e outro.

Segundo o Instituto Guttmacher, que apoia o direito ao aborto, oito estados ainda têm proibições ao aborto vigentes que antecedem Roe vs. Wade, mas alguns têm regras mais recentes que provavelmente terão precedência jurídica. Nos últimos anos, alguns estados, entre eles o Novo México, Vermont e Massachusetts, eliminaram proibições antigas.

No Michigan, onde uma lei de 1931 proíbe o aborto, a disputa já está sendo travada nos tribunais. A governadora democrata Gretchen Whitmer moveu uma ação judicial em abril pedindo que a Suprema Corte do estado resolva se a Constituição estadual protege o direito ao aborto. Um juiz do Michigan emitiu uma liminar em maio que impede a proibição de ser implementada, pelo menos temporariamente, até que uma ação judicial à parte seja decidida.

Na sexta-feira, Whitmer descreveu a lei de 1931 como antiquada, destacando que ela não prevê exceções para casos de gravidez em consequência de estupro ou incesto. "A lei de 1931 quer punir as mulheres e anular seu direito de tomar decisões sobre seu próprio corpo."

Whitmer prometeu vetar qualquer legislação que restrinja o aborto. O Legislativo do Michigan tem maioria republicana, mas ela provavelmente não é grande o suficiente para passar por cima de um veto da governadora.

Há uma proibição anterior à de 1973 em vigor na Virgínia Ocidental, mas especialistas disseram que não está claro se ela ou leis estaduais mais recentes que impõem menos restrições ao aborto entrarão em vigor. O promotor público do estado, Patrick Morrisey, disse em comunicado que "em breve dará um parecer legal ao Legislativo sobre como deve proceder para salvar o maior número de vidas de bebês que for humana e legalmente possível".

Arizona, Alabama e Carolina do Norte também têm leis mais antigas sobre o aborto ainda vigentes, mas restrições mais recentes aprovadas nesses estados podem ter precedência, como a proibição total ao aborto promulgada no Alabama em 2019 mas que até agora estava suplantada pela decisão de 1973.

No Wisconsin, os dois lados preparam processos judiciais e batalhas legais para decidir se a proibição ao aborto, que não pôde ser aplicada desde que Roe vs. Wade legalizou o procedimento, vai levar a ações judiciais.

"O futuro desta lei antiga será determinado em nossos tribunais estaduais e por nosso sistema político estadual", disse Mike Murray, da organização Planned Parenthood de Wisconsin. "Concretamente, haverá litígios pedindo esclarecimento de nossos tribunais sobre se a lei de 1849 pode ou não ser implementada."

Gracie Skogman, diretora legislativa da entidade Wisconsin Right to Life (contra o direito ao aborto), disse que espera que a lei de 1849 "possa ser aplicada e salve vidas aqui no Wisconsin, mas estamos prevendo que será contestada". Na sexta-feira a organização disse: "O Wisconsin se encontra em posição forte para defender a vida pré-nascimento, graças a nosso estatuto anterior a Roe vs. Wade".

Sob a proibição vigente no Wisconsin, médicos que realizam abortos podem ser condenados criminalmente. A medida inclui exceções no caso de um aborto necessário para salvar a vida da mãe, mas não para uma gravidez resultante de estupro ou incesto.

As leis contra o aborto aprovadas no século 19 geralmente eram resultantes de um esforço para regulamentar a prática da medicina, os medicamentos que podiam ser distribuídos e quem fornecia drogas abortivas, disseram historiadores. As leis geralmente proibiam o aborto apenas após o momento, mais ou menos na metade da gestação, em que a mulher passa a poder sentir o feto se mexendo dentro do útero.

Lauren MacIvor Thompson é professora assistente de história e estudos interdisciplinares na Kennesaw State University, na Georgia, e estuda a história do aborto. Ela disse que as leis mais recentes que proíbem o aborto são muito mais restritivas que as leis aprovadas bem mais de um século atrás.

"Muitas das leis aprovadas no século 19 eram mais lenientes e não puniam a mulher. Isso está mudando rapidamente."

Esforços anteriores para revogar a lei de 1849 no Wisconsin fracassaram, mesmo quando o Partido Democrata controlava tanto o governo estadual quanto o Legislativo, e houve pouco empenho do público em derrubá-la.

"Eu não tinha ouvido falar muito da lei até recentemente", comentou Jenny Higgins, professora de estudos de gênero e de mulheres, ginecologia e obstetrícia na Escola de Medicina e Saúde Pública da Universidade de Madison-Wisconsin. "Até recentemente as pessoas não acreditavam realmente que derrubar Roe fosse possível ou palatável."

Em pesquisas de opinião recentes, os eleitores do Wisconsin indicaram que são a favor de conservar a legalidade do aborto. Numa sondagem recente feita pela Marquette Law School, 58% dos habitantes do estado entrevistados disseram que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos.

Na semana passada, o governador Tony Evers convocou uma sessão especial do Legislativo para pressionar os legisladores a revogar a proibição ao aborto. Manifestantes trajando camisetas cor de rosa se reuniram em círculo no Capitólio estadual em Madison e gritaram palavras de ordem.

Mas os republicanos, que formam a maioria no Senado estadual, encerraram a sessão pouco depois de ela ter começado, sem votação nem debates. Robin Vos, o presidente da Assembleia, escreveu no Twitter que "resguardar os direitos de crianças que ainda não nasceram não deveria gerar controvérsia".

Evers, que é candidato à reeleição em novembro, criticou os parlamentares republicanos após a sessão, dizendo que haviam prejudicado o acesso à saúde.

"A recusa de republicanos em agir terá consequências concretas e graves para todos nós e para as pessoas mais importantes para nós, que podem ser destituídas da possibilidade de tomar decisões sobre sua própria saúde reprodutiva", disse.

Tradução de Clara Allain 

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