Podcast explica como a fé foi colocada a serviço da guerra na Rússia

Para os ortodoxos de Moscou, opor-se à guerra se tornou uma heresia espiritual e política

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São Paulo

Não há nenhum segredo no fato de a invasão da Ucrânia pela Rússia ter sido amplamente apoiada pela Igreja Ortodoxa de Moscou. Seu chefe espiritual, o patriarca Cirilo, compartilha com o presidente Vladimir Putin do mesmo nacionalismo e do culto à hierarquia que vigoram no Kremlin.

Mas esse é apenas o ponto de partida para entender a dimensão religiosa da guerra desencadeada em fevereiro último. A questão foi discutida por cinco especialistas reunidos pelo Centro para Estudos Europeus e Russos da americana UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles). O debate está disponível em podcast.

A erudição dos participantes foi evidente. Mas com uma omissão no mínimo infeliz. A saber: a fé foi colocada a serviço do Estado e das Forças Armadas. Opor-se à guerra se tornou, para os ortodoxos de Moscou, uma espécie de heresia ao mesmo tempo espiritual e política. A fé, acrescento, é uma forma de conhecimento. Disputa espaço com a racionalidade. É pela fé que, por exemplo, acreditamos na existência de Deus.

O presidente russo, Vladimir Putin, em serviço religioso na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou - Maxim Shemetov - 23.abr.22/Reuters

É compreensível que seja esse o caminho que trilhem o patriarca de Moscou e sua hierarquia ortodoxa. O clero russo, e volto ao debate da UCLA, é hoje tão disciplinado quanto o era na Idade Média. A dissidência é quase impensável. Em oposição a esses clérigos restam apenas alguns padres muitíssimo isolados na Rússia, que são poliglotas e trocam mensagens com restrições à guerra pela rede social Telegram.

Os ortodoxos ucranianos —cuja independência não foi reconhecida pelos ortodoxos russos— correm o risco de serem vistos como desprovidos da verdadeira relação com Cristo e com Deus, disse um dos debatedores, na única intervenção que colocou a fé em evidência.

Vejamos mais um pouco como funciona a estrutura da igreja, que tem como sede Constantinopla, antigo nome da atual cidade turca de Istambul. Cada uma das que carregam a denominação de ortodoxa, como a russa ou a ucraniana, tem autonomia de gestão. Consideram-se ainda, em termos teológicos, "autocéfalas" —ou seja, pensam com a própria cabeça. Mas o ramo de Moscou não aceita esse estatuto para o de Kiev, porque acredita que os dois países, como acontecia nos tempos dos czares e do comunismo, formam uma unidade religiosa.

Clérigos menos liberais acusaram bispos ucranianos de se interessarem pelos bens de uma igreja fragmentada ou no dinheiro em favor da cisão, supostamente enviado pela comunidade ortodoxa dos Estados Unidos.

Como fundo ideológico prevalecem o apego a valores tradicionais, como o casamento, que estaria sob a ameaça dos ateus que controlariam a mídia no Ocidente. "Putin não é um verdadeiro ortodoxo em religião, mas ele tira proveito de uma aliança que lhe é, em todos os sentidos, conveniente", diz um dos especialistas, Roman Koropeckyj, mediador do debate e especialista em literatura ucraniana.

Outro participante, Archimandrite Ciril Hovorun, especialista em ecumenismo na Universidade de Estocolmo, insiste no envolvimento religioso dos militares, que aliás foram presenteados com uma rica igreja em Moscou, dedicada à Força Aérea. "Vocês são guerreiros da gloriosa Rússia", disse um bispo às tropas, "em combate contra o ateísmo dos ucranianos".

Essa sem cerimônia verbal obviamente incomoda, no Exército russo, soldados católicos, judeus, batistas ou islâmicos. Estes últimos eram 9% da população russa há 13 anos; já são hoje 13%. Experimentam uma notável progressão demográfica.

Sean Griffin, professor da Universidade de Helsinque, na Finlândia, lembrou que, pouco depois do colapso do comunismo, o patriarca de então reuniu 5.000 oficiais das Forças Armadas e lhes disse que só a religião preencheria o vazio político que passariam a sentir.

O sociólogo José Casanova, do Berkley Center, diz que Putin se associou aos religiosos ortodoxos para insistir no fato de a Ucrânia ser parte da Rússia e na tese de que negar essa dependência do país vizinho seria sucumbir à secularização liberal e ao feminismo do Ocidente. Citou também uma surreal declaração do presidente quando anexou a Crimeia. "Ela é nossa", disse, porque determinado príncipe russo nasceu naquela península ucraniana.

O patriarca Cirilo em serviço religioso da Igreja Ortodoxa, em Moscou - Oleg Varaov - 10.abr.22/Divulgação/Reuters

A propósito, o Kremlin não participou de comemorações pela independência formal dos ortodoxos da Ucrânia. Ao lado do patriarca ucraniano e das lideranças de outras religiões, ficou vazia a cadeira reservada ao bispo hierarquicamente ligado a Moscou.

Digamos que o desfecho desta guerra está ligado a questões políticas e militares que queimam as pestanas de especialistas em diplomacia, política e defesa. Coexiste ao lado dessas dimensões a religião professada pelos militares e pela população civil. É na periferia desse ponto que chegaram os debatedores da UCLA. O que já foi um mérito mais que suficiente.

A Religião e a Invasão da Ucrânia pela Rússia

  • Onde Disponível no site do Centro de Estudos Europeus e Russos da UCLA
  • Duração 88 min. (em inglês)
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