Índia solta 11 condenados por estupro coletivo e assassinatos após 5 anos

Casta pode ter influenciado decisão da justiça, segundo analistas; caso ocorreu em 2002

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Karan Deep Singh Suhasini Raj Mujib Mashal
Godhra (Índia) | The New York Times

Durante 15 anos, enquanto se mudava de casa em casa para dar segurança à sua família, Bilkis Bano esperou a garantia dos tribunais de que os homens que a estupraram e assassinaram muitos de seus parentes passariam o resto da vida na prisão.

Isso finalmente aconteceu em 2017. Nos anos que se seguiram, conta Bano, ela aprendeu "lentamente a conviver com o trauma" pela chacina comunitária que assolou o estado indiano de Gujarat em 2002 e devastou sua família. Ela e o marido estavam agora prontos para se estabelecer em uma nova casa perto de parentes e retomar seus negócios de venda de cabras e búfalos.

Então, na semana passada, os 11 criminosos foram libertados, recebidos com doces e guirlandas.

Prisão onde os condenados no caso de estupro de Bilkis Bano foram presos em Godhra, na Índia
Prisão onde os condenados no caso de estupro de Bilkis Bano foram presos em Godhra, na Índia - Saumya Khandelwal - 19.ago.22 /The New York Times

"O trauma dos últimos 20 anos tomou conta de mim novamente", disse Bano em comunicado divulgado por seu advogado na quarta-feira (17). "Ainda estou atordoada." Ela parou de falar com qualquer pessoa fora de casa, conta seu marido, Yakub Rasul. "Eles foram soltos", diz. "Estamos pensando o que vão fazer conosco."

O caso de Bilkis Bano, uma mulher muçulmana que foi estuprada e teve a filha de três anos morta por uma multidão hindu, é um trágico reflexo do progresso interrompido da Índia no combate à violência contra mulheres e das profundas divisões geradas pelo crescente nacionalismo hindu.

A libertação antecipada dos condenados ocorre quando o país marca dez anos do horrível estupro coletivo de uma jovem em um ônibus na capital, Nova Déli, que desencadeou protestos em todo o país e levou a um exame de consciência nacional. O resultado foram leis mais rígidas, reformas policiais, proteções mais amplas para as mulheres e um esforço contínuo para modificar as atitudes.

"Eu tenho um pedido para todo indiano: podemos mudar a mentalidade em relação às nossas mulheres na vida cotidiana?", disse o primeiro-ministro Narendra Modi em um discurso no 75º aniversário da independência da Índia, na semana passada. "É importante que em nosso discurso e nossa conduta não façamos nada que diminua a dignidade das mulheres."

Mas a libertação dos homens no mesmo dia do discurso de Modi —e ao mesmo tempo que o governo enfrenta críticas por prender ativistas e vozes dissidentes por longos períodos— mostrou com que facilidade as maquinações políticas podem minar os esforços na Justiça.

Modi era a maior autoridade em Gujarat na época da violência sectária de 2002. Então, como agora, ele era acusado pelos críticos de incentivar e explorar a polarização religiosa do país para consolidar a base hindu de seu partido BJP.

Alguns analistas consideraram a libertação dos homens, após cerca de 15 anos de prisão, relacionada às eleições marcadas para dezembro em Gujarat, onde o BJP ocupa o poder há duas décadas.

"Se eles cometeram o crime ou não, não sei", disse C. K. Raulji, legislador do partido governista que participou de um comitê de revisão do caso que recomendou a libertação. Raulji chegou a sugerir que a posição dos homens como hindus de casta elevada pesou a favor da libertação deles. "A atividade da família deles era muito boa; eles são brâmanes", afirmou. "E, como brâmanes, seus valores também eram muito bons."

Mais tarde, com a reação negativa, ele alegou que seus comentários —que foram gravados em vídeo— foram mal interpretados.

Na primavera, a Suprema Corte da Índia instruiu o governo do estado a ouvir o pedido de libertação dos homens. Embora o estado tenha mudado sua política em 2014 para impedir a clemência aos autores de crimes como estupro e assassinato, os homens pediram que o caso fosse considerado sob a política que estava em vigor no momento dos crimes.

O comitê de revisão, formado por membros do partido governista, decidiu que os homens deviam ser libertados, e o governo estadual aceitou a recomendação. As autoridades indicaram que o bom comportamento dos condenados na prisão foi um fator para sua libertação. "É critério do governo tomar as medidas apropriadas no caso com base em seus méritos", disse Raj Kumar, secretário do Interior.

O caso de Bano decorre de um período horrível de violência sectária quando Modi era ministro-chefe de Gujarat. Uma série de tumultos começou depois que quase 60 peregrinos hindus foram queimados vivos em um trem. Um inquérito inicial declarou o incêndio acidental, enquanto comissões e processos judiciais posteriores concluíram que se tratou de uma conspiração de uma turba muçulmana.

A violenta retaliação varreu grande parte de Gujarat, deixando mais de mil pessoas mortas, na maioria muçulmanas.

Bano foi repetidamente estuprada por seus agressores, apesar de seus apelos de que estava grávida de cinco meses. Um deles pegou sua filha de três anos e "matou a criança esmagando-a no chão", testemunharam os investigadores. Ao todo, 14 membros de sua família foram mortos enquanto tentavam fugir. Vários tiveram a cabeça cortada; outros foram enterrados "em uma cova com sal" para se decompor.

Nas duas décadas seguintes, assessores de Modi tentaram assiduamente afastá-lo das acusações de que seu governo fez vista grossa enquanto as turbas hindus se agitavam. Essas autoridades chamaram as acusações de conspiração de uma "tríade de partidos de oposição ao BJP, alguns jornalistas e algumas ONGs" para manchar a imagem do atual premiê.

Hoje, uma rua estreita que serpenteia entre casas cobertas de barro e terras agrícolas abandonadas leva ao local onde os moradores dizem que Bano e sua família foram atacados em 3 de março de 2002. Uma colina rochosa com vegetação áspera domina a área florestal para onde, segundo eles, a mulher foi arrastada e estuprada. Vacas nadam nas águas de um rio próximo.

Cerca de 10 quilômetros morro abaixo fica a antiga casa de Bano na vila de Randhikpur, dominada por hindus. Agora é ocupada por vendedores de frutas e lojas que vendem grãos no atacado. No outro lado da estrada é onde Radheshyam Shah, um dos 11 condenados, foi recebido por sua mulher e as irmãs na semana passada com doces caseiros.

"As pessoas estão dizendo: 'Elas deram doces aos condenados'", diz Ashish Shah, irmão mais novo de Radheshyam. "Não podemos comemorar?" O mais velho, que havia retornado da prisão três dias antes, disse por telefone que é inocente e partiu com sua família para o Rajastão em uma peregrinação.

Para Bano e sua família, a mensagem de boas-vindas foi totalmente diferente. "Se vocês dão boas-vindas a esses estupradores que voltam à sociedade, o que acontecerá com as mulheres desse país?", indaga Rasul.

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