Descrição de chapéu Financial Times Governo Biden

Como direito ao aborto está afetando as eleições legislativas dos EUA

Analistas dizem que inflação e imigração podem motivar comparecimento de republicanos

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James Politi
Lansing (EUA) | Financial Times

Elissa Slotkin, deputada democrata que representa um distrito congressional de voto indeciso no coração de Michigan, se recorda do momento em que os direitos de aborto explodiram como questão candente nas chamadas midterms, eleições de meio de mandato nos EUA.

Foi no início de maio. Acabara de vazar a notícia da intenção da Suprema Corte de derrubar o precedente legal Roe vs. Wade, em vigor havia meio século, rescindindo o direito constitucional à interrupção da gravidez no país.

Slotkin estava num voo de Detroit a Washington e ouviu duas republicanas conversando e lamentando a decisão, que seria confirmada no mês seguinte.

Em Nova York, manifestantes protestam a favor da manutenção do direito ao aborto nos EUA; o tema deve pautar as eleições legislativas de novembro
Em Nova York, manifestantes protestam a favor da manutenção do direito ao aborto nos EUA; o tema deve pautar as eleições legislativas de novembro - Jeenah Moon/AFP

"As duas disseram ‘Eu jamais faria um aborto, mas nunca estive na pele de outra mulher e não diria a ela o que fazer’", conta Slotkin, entrevistada em setembro na igreja batista Mount Calvary. "Depois disso foram inúmeras mulheres me chamando em eventos e dizendo coisas como ‘Veja bem... Isso já é demais'."

Slotkin, 46, está longe de ser uma guerreira social progressista. Ex-analista da CIA e funcionária do Pentágono, concentra sua atenção como parlamentar principalmente em sua experiência com segurança nacional e assuntos de militares veteranos, além de questões como economia e empregos no setor manufatureiro.

Tirando seus encontros com mulheres dispostas a compartilhar suas histórias e o medo que lhes suscita a redução do acesso à saúde reprodutiva, Slotkin diz que a questão do aborto começou a afetar a disputa eleitoral de outras maneiras concretas.

Quando voluntários fizeram campanha de porta em porta, ela diz, o assunto dominou as conversas. E, no distrito dela, estudantes da Universidade Estadual do Michigan se cadastraram para votar pela primeira vez em uma onda. Na reta final da campanha, seu rival republicano, Tom Barrett, de repente se viu na defensiva pelo fato de ser a favor de limitações rígidas ao aborto.

"Virou um tópico que você não tem como evitar, mesmo que não queira falar disso", diz Slotkin. "Eles [republicanos] estão encurralados, porque esse assunto teima em reaparecer. Não vai embora."

A dias de os americanos irem à urnas, o resultado das midterms está muito menos previsível.

Os republicanos, que estavam a caminho de recuperar o controle da Câmara sem dificuldade, devido à insatisfação com a inflação e ao desencanto com o presidente Joe Biden, agora estão travando uma luta muito mais difícil. Os institutos de pesquisas dizem que ainda é provável que os republicanos vençam, mas com uma maioria pequena.

No Senado, porém, os democratas têm nova esperança de conseguir conservar sua maioria depois de os eleitores das primárias republicanas escolherem uma série de candidatos leais ao ex-presidente Donald Trump em disputas-chave, da Pensilvânia a Ohio, de Geórgia ao Arizona.

A média genérica de pesquisas calculada pelo Financial Times, em maio dava uma vantagem de 3,4 pontos percentuais aos republicanos, agora dá aos democratas uma dianteira de 1,4 ponto.

Biden e seu partido estão encarando as midterms com mais confiança em sua chance de evitar as derrotas expressivas dos primeiros mandatos de dois de seus antecessores: Bill Clinton em 1994 e Barack Obama em 2010.

A situação pode se inverter facilmente se os preços da gasolina voltarem a subir ou se os eleitores começarem a prestar mais atenção a outras questões em jogo nas quais os republicanos levam vantagem, como a imigração na fronteira sul.

Mas a anulação de Roe vs. Wade entregou aos democratas o equivalente a ouro político: ela deve motivar a base e os apoiadores do partido a cadastrar-se para votar e comparecer às urnas em peso. Sondagem da CBS constatou que 71% das eleitoras mulheres disseram que um candidato precisa concordar com elas sobre o aborto para receber seu voto. Entre as democratas, o direito ao aborto é a questão mais importante do pleito.

"A decisão da Suprema Corte evidenciou com muita clareza quais serão para os democratas as consequências de se abster de votar", diz a cientista política Lara Brown, do think tank New Center. "Fundamentalmente, os democratas, e em especial as mulheres, estão mobilizados em torno da ideia de que por 50 anos elas tiveram essa escolha e agora ela é determinada pelas leis de cada estado; e muitas vivem em estados onde elas não têm mais essa escolha."

O debate no estado dos Grandes Lagos

Michigan emergiu como o lugar onde o debate político em torno dos direitos reprodutivos será posto à prova neste ano, isso porque o aborto ocupa um lugar separado na votação. Se os eleitores aprovarem a chamada Proposta 3, que tem o apoio dos democratas, o direito ao aborto ficará consagrado na Constituição estadual.

Ela anularia uma lei estadual de 1931 que criminaliza o aborto na maioria dos casos, incluindo estupro e incesto, excetuando unicamente para preservar a vida da mãe. Enquanto a proteção constitucional dada por Roe estava em vigor, as restrições em Michigan nunca chegaram a ser implementadas. Mas a nova decisão abriu caminho para sua possível implementação e para o início de processos judiciais.

Manifestantes contra o direito ao aborto se manivestam em Nova York, nos EUA
Manifestantes contra o direito ao aborto se manivestam em Nova York, nos EUA - Jeenah Moon/AFP

A expectativa é que a votação de uma medida específica energize a participação dos eleitores e afete disputas em todos os níveis, incluindo as disputas por vagas no Congresso, pelo governo e pelo Legislativo estadual. Proposta semelhante em julho no Kansas, estado profundamente conservador, resultou na vitória retumbante dos defensores do direito ao aborto.

A deputada estadual democrata Sarah Anthony, candidata a uma vaga no Senado estadual, disse que nota interesse em proteger os direitos ao aborto entre muitos setores do eleitorado, de cidades rurais profundamente conservadoras até igrejas negras, onde o assunto antes era tabu. "Os eleitores querem saber não apenas como cada candidato se posiciona sobre essa questão mas também o que ele vai fazer para assegurar que a proposta seja aprovada nas urnas", diz.

Gretchen Whitmer, a governadora democrata, converteu a proteção dos direitos ao aborto num dos pontos-chave de sua campanha à reeleição, na qual enfrenta a republicana Tudor Dixon. Personalidade da mídia conservadora, Dixon é declaradamente antiaborto. As pesquisas sugerem que Whitmer é a favorita.

Na disputa de Slotkin, o comitê de ação política da maioria na Câmara, um grupo que promove candidatos democratas, já lançou um anúncio digital atacando Tom Barrett por apoiar a lei de 1931. Como vários republicanos que enfrentam disputas apertadas para o Congresso, ele vem tentando distanciar-se das posturas mais radicais. Sua equipe se negou a dar declarações para esta reportagem.

Mas Slotkin diz que é pouco provável que eleitores acreditem na mudança de postura do adversário. Ela destaca a ironia de que republicanos historicamente terem mobilizado eleitores em torno de questões sociais e agora se verem na posição contrária. "Eles não fazem ideia do que fazer."

No início do mês, o senador republicano Lindsey Graham, da Carolina do Sul, dificultou ainda mais a vida dos candidatos de seu partido quando propôs uma proibição nacional abrangente do aborto após 15 semanas de gestação e a imposição de penas criminais a médicos que façam o procedimento. A proposta foi praticamente descartada por Mitch McConnell, líder da minoria, mas parece ter confirmado os receios democratas de que o Partido Republicano quer ir além até mesmo da decisão da Suprema Corte.

Como vai ficar?

Ainda não se sabe se a reação contrária à decisão da Suprema Corte vai se traduzir em votos suficientes para os democratas mudarem significativamente o resultado de midterms difíceis. John Truscott, consultor político republicano em Michigan, diz que o Partido Republicano foi "pego de calças curtas", mas que o impacto talvez não seja tão forte quanto os democratas agora esperam.

"As questões econômicas vão voltar a ser levadas em conta na reta final da campanha", diz.

Para autoridades e políticos democratas, a realidade fundamental é que boa parte da mobilização é baseada no medo —frequentemente num nível muito pessoal. "Sabíamos que isso ia acontecer, mas quando aconteceu de fato foi como um balde de água fria", diz Judy Daubenmier, presidente do Partido Democrata no condado de Livingston. "Não era mais alguém querendo nos assustar. Era real. E isso assustou as pessoas."

Brown, do think tank New Center, acha que agora tanto os eleitores republicanos quanto os democratas devem comparecer às urnas em grande número, tornando o resultado especialmente incerto. "Uns vão votar por causa da inflação, da criminalidade e da imigração; outros por causa do aborto e da ameaça à democracia."

Em uma sondagem do instituto EPIC-MRA com prováveis eleitores em Michigan, 24% citaram as leis do aborto como o problema principal em questão, empatado com o controle da inflação. "Essencialmente, estamos vendo duas ondas, cada uma mobilizada por problemas distintos e ambas operando até certo ponto dentro de suas respectivas bolhas partidárias e de informação", diz Brown. "A grande pergunta é o que vai acontecer quando essas duas ondas se chocarem."

Tradução de Clara Allain

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