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Guerra da Ucrânia Rússia

Queda de Liz Truss é presente inesperado para Putin

Com Reino Unido flertando virar a Itália, continente ganha mais instabilidade em meio à guerra

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São Paulo

Serguei Lavrov deve estar rindo pelos cotovelos. Duas semanas antes da invasão russa da Ucrânia, o chanceler russo recebeu sua então homóloga britânica, Liz Truss, para discutir a crise que se avolumava.

Numa insólita entrevista coletiva, o decano da diplomacia mundial disse: "Estou honestamente desapontado que nós tenhamos tido uma conversa entre um mudo e um surdo". Truss retrucou: "Eu não vejo outra razão para ter 100 mil soldados estacionados na fronteira se não para ameaçar a Ucrânia".

Truss, então chanceler britânica, e seu colega Lavrov chegam para entrevista em Moscou
Truss, então chanceler britânica, e seu colega Lavrov chegam para entrevista em Moscou - Ministério das Relações Exteriores da Rússia - 10.fev.2022/AFP

A história fará justiça à britânica que agora é uma das mais breves no cargo, já que a Rússia de fato estava armando seus mísseis naquele momento. Mas parece inevitável em Moscou o "Schadenfreude", palavra alemã que define o prazer com a derrocada alheia.

A porta-voz de Lavrov zombou no Twitter. Maria Zakharova criticou Truss por seu "analfabetismo catastrófico" —uma referência ao encontro de 10 de fevereiro com seu chefe, no qual ela confundiu regiões russas com ucranianas ao elaborar sua queixa.

Piadinhas à parte, a queda de Truss é um presente algo inesperado para Vladimir Putin no momento em que a crise decorrente da Guerra da Ucrânia atinge um ponto especialmente perigoso, com o russo anexando 18% do vizinho e sendo colocado numa posição militar exposta, recorrendo a mobilização, lei marcial e ameaças nucleares.

Isso tudo com a guerra energética com a Europa a todo vapor, com as temperaturas europeias começando a declinar à espera do inverno no hemisfério Norte.

Não que a pessoa que substituir Truss deva abrandar a posição britânica em relação à Rússia. A linha dura da primeira-ministra demissionária não era diferente da de seu antecessor, Boris Johnson, e do sentimento prevalente no Partido Conservador que manterá o poder.

O Reino Unido faz parte, com os países do Leste Europeu mais preocupados com a Rússia, como Polônia e os bálticos, da vanguarda da agressividade contra Moscou. Foram bem-sucedidos ao atrair os Estados Unidos à sua causa, mas foi necessária a guerra para aos poucos carregar para seu campo os mamutes econômicos do continente, caso de Alemanha, França e Itália.

O brexit não facilitou as coisas para Londres, mas hoje no discurso a Europa é quase uma só. Isso dito, fraturas internas se avolumam e ameaçam governos continente afora, como já aconteceu na Itália —ainda que a herdeira do fascismo Giorgia Meloni tenha se colocado frontalmente contra Putin, ao menos por ora.

A rapidez da derrocada de Truss, aliás, sugere o risco de uma certa "italianização" da política britânica, acostumada a relativa estabilidade. Não há, afora Boris, lideranças de relevo evidentes no país, assim como a igualmente controversa figura de Silvio Berlusconi paira sobre a política peninsular há décadas.

Essa instabilidade favorece Putin. Truss adicionou à pressão econômica devido ao aumento dos preços de combustíveis e comida a inépcia que levou a libra a valer tanto quanto o dólar, algo inaudito.

O fator inflacionário, de resto, segue presente na vida britânica, aumentando a insatisfação popular. O mesmo ocorre em outros pontos, como na França do enfraquecido Emmanuel Macron. A Hungria segue como polo dúbio em relação a Moscou, e a ultradireita chegou ao poder na Itália e na Suécia, esta em processo de adesão à Otan.

É um cenário de pouca coesão institucional, apesar da retórica antirrussa, o que sempre pode vir a favorecer o Kremlin quando o frio chegar. Não se trata nem tanto de faltar gás, mas do quanto será pago por ele: segundo a União Europeia, os estoques do produto estão a 92% dos reservatórios nos 27 países do bloco.

Mas os preços médios no grupo, que exclui o Reino Unido, subiram duas vezes e meia para consumidores industriais e estatais desde o começo do ano. Nas casas, o aumento foi de 60%, com registro de contas de energia até dez vezes mais altas em alguns países.

A substituição do produto russo é lenta. No primeiro semestre, veio de Moscou 31,4% do gás consumido na Europa, excluindo aí os britânicos. A média anual até aqui era de cerca de 40%. Estados Unidos, Nigéria, Argélia, Qatar e Noruega estão se dando bem no processo, mas seu produto é mais caro e, no caso dos três primeiros, depende de unidades para gaseificar o insumo líquido.

A misteriosa explosão de três dos quatro ramos do sistema de gasodutos Rússia-Alemanha, que já estava fechado por ordem de Putin, apenas adicionou elementos de pressão. Berlim aprovou um pacote de € 200 bilhões (pouco mais de R$ 1 trilhão) para tentar proteger sua indústria —o dobro do que havia anunciado em gastos militares extra por conta da guerra.

Se não necessariamente vai mudar a disposição britânica no conflito, a queda de Truss enfraquece ainda que momentaneamente um elo vital na corrente do dito Partido da Guerra entre os europeus. Só por isso, Putin já deve se unir a Lavrov na gargalhada.

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