Cerimônia sobre Auschwitz vira novo palco para a disputa Rússia-Ocidente

Polônia critica escolha de Putin, que busca reescrever história do começo da 2ª Guerra, para discursar

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São Paulo

A cerimônia alusiva aos 75 anos da libertação do campo de concentração nazista de Auschwitz virou o novo palco da disputa entre a Rússia do presidente Vladimir Putin e o Ocidente.

Em jogo, a narrativa histórica sobre quem começou a Segunda Guerra Mundial (1939-45), tema que o russo tomou para si com uma série de declarações polêmicas no mês passado.

Líderes posam após jantar oferecido pelo presidente de Israel, Reuven Rivlin, em Jerusalém; à frente, Binyamin Netanyahu (premiê israelense), Emmanuel Macron (presidente da França), Rivlin, Frank-Walter Steinmeier (presidente da Alemanha) e o rei Willem-Alexander (Holanda) 
Líderes posam após jantar oferecido pelo presidente de Israel, Reuven Rivlin, em Jerusalém; à frente, Binyamin Netanyahu (premiê israelense), Emmanuel Macron (presidente da França), Rivlin, Frank-Walter Steinmeier (presidente da Alemanha) e o rei Willem-Alexander (Holanda)  - Heidi Levine/Pool/Reuters

Putin foi convidado a fazer o principal discurso de um líder mundial no evento, que ocorre nesta quinta (23) em Jerusalém. Foram as tropas da União Soviética, país que tinha a Rússia como principal Estado entre 1917 e 1991, que libertaram o campo de concentração em 27 de janeiro de 1945.

O presidente polonês, Andrzej Duda, se recusou a participar da cerimônia. Queixou-se que o conflito iniciado com a ocupação da Polônia pelos nazistas matou 3 milhões de poloneses étnicos —e igual número de judeus locais.

Auschwitz e outros campos de extermínio da máquina do ditador da Alemanha nazista, Adolf Hitler (1889-1945), afinal, ficavam na Polônia.

No sítio do antigo complexo de Auschwitz-Birkenau, na atual Oswiecim, haverá outra cerimônia na segunda-feira (27), dia oficial da libertação.

O local é o maior símbolo do Holocausto, o assassinato sistemático de judeus e outras minorias pela Alemanha nazista. Dos 6 milhões de judeus mortos no processo, cerca de 1 milhão pereceu lá.

Mas a disputa diz pouco a respeito do Holocausto, e sim sobre o conflito no qual a monstruosidade ocorreu. Putin está empenhado em tentar reescrever a história da origem da Segunda Guerra como é conhecida hoje.

O conflito foi central para tornar a União Soviética uma superpotência ao lado dos EUA, e sua brutalidade está impressa na identidade nacional russa. No país, é conhecida como a Grande Guerra Patriótica e durou de 1941, com a invasão alemã, a 1945.


Eventos que levaram à guerra em questão

Acordo de Munique 
Em 1938, as potências ocidentais cederam parte da Tchecoslováquia para apaziguar Hitler. Putin diz que isso tornou a guerra inevitável. Historiadores costumam elencar o acordo como um dos motivos.

Papel da Polônia 
Putin acusa o país de ter ajudado a precipitar a guerra que começou com a invasão de seu território. Varsóvia de fato anexou uma área tcheca, mas isso não é visto como central para o desenrolar dos eventos, por exemplo.

Pacto de 1939
Putin tenta reduzir a importância do acordo entre Hitler e Stálin que levou à partilha da Polônia e outras áreas. Se não iguala os ditadores, isso permitiu aos nazistas começarem a guerra sem risco de uma segunda frente.


Segundo pesquisa do Centro Levada em 2018, 68% dos russos perderam algum parente na guerra, e 81% tiveram um familiar envolvido em combate. Nenhum país sofreu tanto: foram 27 milhões de mortos, 18 milhões deles civis, 5,7 milhões exterminados de forma sistemática —sem contar aí 1,3 milhão de judeus soviéticos. Sem o esforço russo, talvez não houvesse vitória dos Aliados, ao menos não em 1945.

Abandonando o comunismo, que no começo de seu período no poder, em 1999, ainda tinha alguma densidade política, Putin abraçou a narrativa heroica e transformou o 9 de maio, dia da vitória em 1945, na data central do calendário do país.

Em dezembro do ano passado, contudo, algo mudou. Putin falou em cinco ocasiões sobre o começo da guerra —em todas apontando o dedo para a Europa, Polônia à frente, como corresponsáveis pela tragédia.

Ele tinha motivação inicial clara. Em setembro, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução culpando igualmente soviéticos e nazistas pelo início da guerra, devido ao pacto Molotov-Ribbentrop, de 23 de agosto de 1939.

Estabelecido pouco antes de a Alemanha invadir a Polônia, em 1º de setembro, o acordo previa a não agressão entre os países, passo essencial para que Hitler pudesse atacar a Europa Ocidental sem temer duas frentes, como na Primeira Guerra Mundial.

Para tanto, o trato partilhava secretamente o território polonês entre Berlim e Moscou e estabelecia as zonas de influência de cada potência —o que levou à anexação soviética dos Estados Bálticos.

A União Soviética só reconheceu culpa pelo pacto, rompido por Hitler em 1941, em 1989. Mas mesmo no Ocidente a historiografia é praticamente unânime: não é possível dividir igualmente a responsabilidade, dado que os alemães estavam na ofensiva, e o ditador Josef Stálin acabou traído.

Na sua entrevista coletiva anual, no 19 de dezembro passado, Putin disse que na verdade a culpa era de um pacto anterior, o Acordo de Munique, pelo qual o Reino Unido e a França tentaram apaziguar Hitler cedendo a ele porções da antiga Tchecoslováquia em 1938.

Novamente, é meia verdade. Ninguém discorda da importância que o erro de Munique teve para alimentar a ambição nazista. No acordo firmado em 1938, contudo, não houve criação de esferas de influência e os ocidentais não entraram em partilha.

Em 20 de dezembro, falando a líderes eurasianos, Putin foi mais direto: “Foram eles [os poloneses] que, buscando suas ambições mercenárias e exageradas, colocaram seu povo à mercê do ataque da máquina militar alemã. Acima de tudo, contribuindo no geral para o começo da Segunda Guerra”.

Dizendo que o Acordo de Munique “tornou a guerra inevitável”, Putin elaborou um argumento bastante duvidoso: de que a União Soviética queria intervir para salvar a Tchecoslováquia se a França o tivesse feito.

Também apontou para o fato de que a Polônia se aproveitou da situação e, pouco mais de um mês após o acordo, anexou sob ameaça militar um pedaço do território tcheco ao sul da região da Silésia.

Isso aconteceu, mas historiadores tendem a considerar a anexação mais um oportunismo pontual polonês sobre uma região em disputa do que um conluio com Hitler e os signatários de Munique.

Putin ainda completou, em encontro com generais no dia 24 de dezembro, que o embaixador polonês na Alemanha pré-guerra era um “bastardo” e um “porco antissemita” alinhado aos nazistas.

Disse ainda que o pacto com Hitler evitou que os poloneses sob domínio soviético fossem “para a fornalha” —quando no máximo adiou o processo, já que os alemães conquistaram o resto do país em 1941.

Nenhuma palavra sobre o massacre de Katyn, em que o Exército Vermelho matou 22 mil membros da elite militar polonesa, em 1940.

A ofensiva de declarações caiu como uma bomba, levando o premiê polonês a emitir uma declaração segundo a qual Putin mentia repetidamente sobre seu país. “O povo russo merece a verdade”, afirmou Mateusz Morawiecki. Agora, a rusga sobre Auschwitz renova a polêmica.

A questão que intrigou observadores foi o “timing” de Putin, que na semana passada iniciou um plano de reforma constitucional que na prática deverá estender seu poder para além do mandato na Presidência, que acaba em 2024.

“Ele não é uma pessoa comum, logo não fez isso sem pensar”, diz George Friedman, um dos papas da geopolítica mundial, fundador da consultoria Geopolitical Futures.

Ele aponta para a desconfiança do Kremlin acerca dos poloneses, que mantêm retórica agressiva e belicista contra Moscou como principal força da Otan (aliança militar ocidental) a leste. “A fala vai alienar franceses e irritar alemães. Putin não espera guerra com Alemanha ou França, mas se preocupa com a Polônia.”

Como diz Friedman, a chave se chama Belarus. Quase um protetorado russo desde o fim da União Soviética, o país tem ensaiado jogo duplo ao namorar instituições ocidentais. Putin não permitirá que isso ocorra, como aconteceu na Ucrânia e o levou a anexar a Crimeia e intervir no leste do vizinho em 2014.

Nas últimas semanas, deu um tiro de advertência ao cortar o fornecimento de petróleo aos bielorrussos.

Tanto Belarus quanto Ucrânia são regiões que separam a Europa da Rússia e são vistas como tampões estratégicos por Moscou.

Em ambos os países, há forte interesse dos poloneses, presentes historicamente por lá. Esse é o cabo de guerra que vem sendo jogado, e Putin busca com sua lição particular de história pintar Varsóvia como uma agressora potencial.

“Fazendo isso, Putin pode estar avisando os poloneses e os americanos para que não acreditem, nem por um minuto, que uma guerra está fora de questão”, afirma Friedman. Para o analista, Putin não quer embate, mas “redesenhar o governo e a história inevitavelmente abre a porta para conflitos”.

Além disso, os poloneses estão em posição de força na Otan, sediando novos batalhões e um sistema antimíssil. Mas no corpo político da União Europeia, seu governo nacionalista está sob fogo por ter aprovado uma lei autoritária que prevê maior controle do Judiciário pelo Executivo.

Com isso, Putin trabalha pela divisão entre adversários. Após o “round” desta quinta, em que poderá asseverar alguma de suas certezas no discurso em Israel, o próximo embate deverá ser em maio.

O russo prepara uma megacelebração dos 75 anos do fim da guerra em Moscou, talvez com a presença do americano Donald Trump.

Por fim, há o papel de Israel, que mantém uma aliança pragmática com o Kremlin no Oriente Médio. Putin irá se encontrar na passagem por Jerusalém com a mãe de uma israelense que foi presa no ano passado com 9,6 gramas de haxixe, numa conexão aérea em Moscou.

Condenada a exorbitantes sete anos e meio de cadeia, naquilo que observadores veem como retaliação pela prisão e extradição aos Estados Unidos de um hacker russo em Israel, Naama Issachar deverá ser perdoada por Putin.

Alvo de lobby direto do premiê Binyamin Netanyahu, sua soltura seria um presente para sua campanha eleitoral.

A especulação nos meios políticos israelenses é que o preço disso foi o convite VIP para Putin falar sobre o Holocausto, que ao fim parece ser o maior dos coadjuvantes em sua própria cerimônia.

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