Camboja criminaliza mulheres mães de aluguel e as faz criar bebês

País do Sudeste Asiático considera prática crime relacionado a tráfico humano, que pode gerar até 20 anos de prisão

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Hannah Beech
Phnom Penh (Camboja) | The New York Times

O bebê não era realmente dela. Hun Daneth sentia isso, contava com isso. Quando ela deu à luz um menino que não se parecia com ela, ficou ainda mais claro.

Mas hoje, quatro anos depois de ter servido de barriga de aluguel para um empresário chinês, que disse ter usado o óvulo de uma doadora russa, Hun Daneth está sendo obrigada pelos tribunais do Camboja a criar o menino ela mesma, sob pena de ir para a prisão. O empresário está preso devido à contratação da barriga de aluguel. Sua apelação da sentença foi rejeitada em junho.

Hun Daneth com o garoto de três anos que ela gestou para um homem chinês que acabou preso
Hun Daneth com o garoto de três anos que ela gestou para um homem chinês que acabou preso - Nadia Shira Cohen - 22.jan.22/The New York Times

Enquanto enfrentava o choque de ter de criar o bebê, Hun Daneth foi trocando as fraldas dele. Com o passar dos meses e dos anos, foi o abraçando e beijando, persuadindo-o a comer mais arroz para poder crescer forte. E acabou encarando o menino como seu próprio filho. "Eu o amo demais."

Os destinos de uma mulher cambojana, um homem chinês e o menino que os vincula refletem os dilemas éticos complexos criados pela indústria global da barriga de aluguel. Enquanto a prática é legal em alguns países —e em muitos casos extremamente cara—, outros a proibiram. E alguns países com sistemas legais fracos, como o Camboja, deixaram que um mercado clandestino funcionasse, colocando os envolvidos em risco quando as condições políticas mudam de repente, dando lugar a processos criminais.

Defensores da prática dizem que, quando ela é realizada de maneira transparente, com salvaguardas, a barriga de aluguel comercial permite às pessoas ampliar sua família e ao mesmo tempo recompensar justamente as mulheres que gestam os filhos. Feito incorretamente, o processo pode resultar no abuso de pessoas vulneráveis, quer sejam as mães de aluguel ou os pais da criança gestada.

A prática ocorre no espaço nebuloso entre as pessoas que podem e as que não podem gestar filhos; entre quem possui meios para contratar uma mulher para gestar seus filhos biológicos e as mulheres que precisam do dinheiro; e entre pessoas cuja sexualidade ou status conjugal as impedem de adotar ou tornar-se pais e mães de outra maneira e aquelas cuja fertilidade as isenta dessas restrições.

Desde que a barriga de aluguel foi reprimida em outros países asiáticos, há quase uma década, o Camboja virou um destino popular para interessados. As clínicas de fertilidade e agências especializadas recém-abertas na capital, Phnom Penh, passaram a atrair um grande movimento de estrangeiros.

Quando a indústria começou a crescer, o governo proibiu a prática e prometeu aprovar uma legislação que a tornasse oficialmente ilegal. Mas num país onde a corrupção é endêmica, e as leis, pouco respeitadas, o texto da medida, que não é claramente definido, puniu as próprias mulheres que prometera proteger.

Em 2018, Hun Daneth foi uma entre 30 mães de aluguel, todas grávidas, detidas numa blitz policial de um apartamento de alto padrão em Phnom Penh. Embora até hoje não exista no país uma lei que limite especificamente a barriga de aluguel, o governo criminalizou a prática, usando leis existentes contra o tráfico humano, delito que pode acarretar penas de 20 anos de prisão. Dezenas de mães de aluguel foram presas, acusadas de traficar os bebês que gestaram.

"A barriga de aluguel significa que as mulheres se dispõem a vender bebês, e isso é considerado tráfico humano", disse Chou Bun Eng, secretário de estado do Ministério do Interior e vice-presidente do comitê nacional de combate ao tráfico. "Não queremos que o Camboja fique conhecido como um lugar que produz bebês para compra."

Mas a aplicação de lei de tráfico humano à barriga de aluguel castigou mais fortemente as próprias mães de aluguel. Quase todas as mulheres presas na blitz de 2018 deram à luz num hospital militar enquanto estavam presas. Algumas estavam acorrentadas a seus leitos. Elas, além de vários funcionários de agências de barriga de aluguel, foram condenadas por tráfico de bebês.

Suas sentenças de prisão, anunciadas dois anos depois, vieram com uma condição: em troca da suspensão das penas, teriam que criar os filhos. O juiz avisou que, se tentassem entregar os filhos secretamente aos pais pretendidos, as mães de aluguel seriam encarceradas por muitos anos. Com isso, mulheres cuja condição financeira precária as levou à prática agora têm mais uma boca a alimentar.

Xu Wenjun, o pai do menino a quem Hun Daneth deu à luz, falou rapidamente por trás das grades de um tribunal em Phnom Penh, antes de a polícia intervir. Ele está na prisão há três anos. "Meu filho já deve estar grande", disse, usando uniforme laranja de presidiário. "Será que ele se lembra de mim?"

De onde ele veio?

No meio de uma nuvem de mosquitos, perto de uma pilha de lixo encharcado das chuvas recentes, um menino saiu correndo em direção a Hun Daneth, ainda em seu uniforme de trabalho. Ela pegou seu filho no colo e cheirou seu rosto, um gesto de afeto em muitas partes do Sudeste Asiático.

Hun, 25, decidiu se tornar mãe de aluguel pelo mesmo motivo que as outras: suas dívidas. Muitas dívidas. Como quase 1 milhão de outros cambojanos, em sua maioria mulheres, ela saiu da zona rural e foi trabalhar em fábricas, costurando sutiãs, camisetas, mochilas e moletons. Mas algumas poucas centenas de dólares por mês não dão para muita coisas nas cidades.

Um olheiro na fábrica de roupas onde ela trabalhava lhe falou uma solução possível. Ela poderia receber US$ 9.000 —cinco vezes seu salário de base anual— se fosse mãe de aluguel. O olheiro trabalhava para uma agência local comandada por um chinês e sua esposa cambojana. A irmã da esposa administrava as residências de luxo onde as mães de aluguel ficavam hospedadas.

Oito mães de aluguel que conversaram com o New York Times contaram que nas mansões havia lustres caros, ar condicionado e sanitários com descarga —coisas que nenhuma delas desfrutava em casa. As refeições eram fartas. Xu, um empresário próspero de Shenzhen, no sul da China, foi encaminhado para Hun Daneth. Ele disse a amigos que conversaram com o New York Times que a única coisa que lhe faltava na vida era um filho para dar continuidade à sua linhagem familiar.

A maioria dos bebês chineses gestados por mães de aluguel cambojanas é de garotos. A seleção sexual é proibida na China, mas não no Camboja. A barriga de aluguel comercial não é praticada abertamente na China, apesar da preocupação oficial com a queda do índice de natalidade no país, após décadas de uma política de filho único que foi implementada de modo brutal.

Em depoimento no tribunal no Camboja, Xu disse que sua esposa não podia ter filhos. Mas seus amigos, que exigiram anonimato para falar, por medo de antagonizar as autoridades cambojanas, disseram que a situação do empresário era mais complicada: ele não tinha esposa e não escondia o fato de ser gay.

Hun Daneth disse que Xu lhe falou sobre sua sexualidade. Casais LGBTQ não podem adotar filhos na China, e pessoas homossexuais ou solteiras não podem contratar uma barriga de aluguel na maioria dos países onde a prática é permitida por lei.

A Perfect Fertility Center, ou PFC, uma agência de barrigas de aluguel registrada nas Ilhas Virgens Britânicas, demonstra solidariedade rara com pais LGBTQ, prometendo bebês via Camboja, México e EUA.

A PFC foi fundada por Tony Yu, que recorreu a mães de aluguel para ter seus próprios filhos. Ele é abertamente gay e disse que advogados cambojanos lhe garantiram que sua agência era legal. Segundo documentos aos quais o New York Times teve acesso, em 2017 Xu assinou um contrato com a PFC, comprometendo-se a pagar US$ 75 mil.

Xu visitou Hun Daneth na residência de luxo. Falou a ela que havia uma doadora de óvulos que era uma modelo russa. Ele mostrou a Hun e ao marido dela fotos de uma mulher branca de cabelos ondulados.

Para as mães de aluguel cambojanas, serem obrigadas a criar filhos de outras etnias pode provocar tensão em suas famílias e comunidades. Devido aos traços físicos das crianças, é difícil explicar sua origem. "As pessoas perguntam: ‘Por que ele tem cabelo castanho? De onde ele veio?’", conta Vin Win, 22, outra mãe de aluguel que foi presa com Hun.

'Um desastre'

Policiais entraram pelos arcos de mármore do complexo e invadiram as duas mansões, algemando as gestantes que estavam cochilando em suas camas de armação rosa jogando Candy Crush. A operação policial em julho de 2018 fez parte de uma onda de repressão à prática da barriga de aluguel comercial em toda a região.

Dez cambojanas que conversaram com o New York Times, incluindo as oito que foram presas em 2018, disseram que serviram de barriga de aluguel por escolha própria. O Ministério da Saúde anunciou a proibição da prática no final de 2016, mas não adotou nova legislação criminalizando-a. No espaço legal indefinido assim criado, clínicas de fertilidade e agências especializadas continuaram a ser abertas.

As operações policiais contra as clínicas começaram no ano seguinte. Yu não estava no Camboja quando a polícia invadiu as mansões. Ele disse que não sabia que sua agência estivesse infringindo qualquer lei. "Queria fazer tudo de modo legal e transparente", diz Yu. "Em relação à clínica de fertilidade, todo mundo disse: ‘Está tudo seguro, tudo confortável. Eles têm um passado idôneo.’ Acreditei nisso. Mas então aconteceu o desastre."

'Nossos bebês são nosso crime'

Em agosto de 2018, algemada a um leito de hospital militar, Hun Daneth deu à luz um bebê com cabelos castanhos, pele clara e os mesmos olhos grandes de seu pai chinês. Depois de Yu ter pago quase US$ 150 mil à polícia, segundo seu próprio relato, as mães de aluguel foram soltas. Ele contou que gastou mais de US$ 740 mil tentando resolver a situação.

O governo ordenou que uma organização beneficente cristã fundada por americanos para combater o tráfico sexual de crianças checasse a situação das mulheres depois de darem à luz, contaram autoridades. "Era como se fôssemos bandidas", comentou outra mãe de aluguel, Ry Ly. "Nossos bebês são nosso crime."

Apesar das promessas das mães ao tribunal de que criariam os filhos, várias das crianças não se encontram mais no Camboja. Segundo Yu, foram entregues a seus pais chineses.

Xu, o empresário chinês que está na prisão, foi ao Camboja para tentar levar seu filho embora. Ele procurou Han Daneth diretamente, apesar de a agência tê-lo aconselhado a agir discretamente. Comprou fraldas e brinquedos para o garoto, a quem deu o nome de Yeheng.

Xu apresentou um teste de paternidade à embaixada chinesa em Phnom Penh. Em 2019, tirou um passaporte para o menino. Um funcionário o acompanhou à delegacia de polícia para finalizar os trâmites burocráticos. O fundador da agência de barrigas de aluguel avisou Xu que tratava-se de uma armadilha da polícia. Policiais estavam à sua espera. Xu está encarcerado desde aquele dia.

Em 2020, Xu foi condenado por tráfico humano e sentenciado a 15 anos de prisão. Ele recorreu contra a sentença, mas em junho deste ano seu recurso foi negado.

Tradução de Clara Allain

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