O sucesso do podcast A Mulher da Casa Abandonada, produzido pela Folha a partir da investigação do jornalista Chico Felitti, trouxe à tona a persistência do trabalho análogo à escravidão, revestido sob o manto de trabalho doméstico.
O podcast ensejou o debate a respeito dessa perversa prática que, no caso em questão, também se caracteriza como tráfico internacional de pessoas, em decorrência do deslocamento da vítima ao exterior, ao que se soma a perda de liberdade para retornar ao Brasil ou sair da situação de exploração.
A partir da história narrada, o público compreendeu o significado da expressão jurídica "trabalho análogo à escravidão", usada para definir o trabalho sub ou não remunerado, que se desenvolve sem condições mínimas de dignidade. Não houve, porém, a possibilidade de discutir o tráfico de pessoas. Na época da investigação e processamento criminal, nos EUA, ainda não havia a previsão deste delito, que surgiu em 2003, no Protocolo de Palermo, das Nações Unidas.
Quando a exploração implica o deslocamento da pessoa para outra cidade ou país —e se soma a determinadas peculiaridades, como dificultação de regularização da situação migratória ou da relação de trabalho, retenção de documentos, não pagamento de salários ou imposição de dívidas impagáveis— ocorre o tráfico de pessoas (TP) para fins de trabalho escravo.
Dentre as modalidades de TP, duas outras se destacam no cenário brasileiro: o para fins de exploração sexual e o praticado para extração de tecidos e órgãos humanos.
O crime de tráfico de pessoas é a junção de ações de recrutamento, transporte, transferência e alojamento com o uso de força, ameaça, ou outras formas de coação —como rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou da situação de vulnerabilidade. Na normativa internacional, o consentimento da vítima é irrelevante —ou seja, ninguém pode consentir com a autoescravidão, vendendo sua liberdade.
São muitas as causas e situações de vulnerabilidade que favorecem o tráfico humano: desemprego, baixa escolaridade, crises políticas, guerras, discriminações decorrentes de orientação sexual e identidade de gênero, racismo estrutural, misoginia e analfabetismo digital.
As organizações criminosas também atuam nas redes virtuais de comunicação. A partir da pandemia de Covid-19, estudos apontaram que as mulheres são as mais comumente aliciadas pelas redes sociais, com propostas de trabalho tentadoras e falaciosas, realçando o viés de gênero no tráfico de pessoas, especialmente para fins de exploração sexual.
Essas violências, que transformam gente em coisas, ocorrem todos os dias, no mundo inteiro. Assombram e causam repúdio, quando noticiadas; ficam adormecidas e silenciadas, entre um caso rumoroso e outro.
No entanto, temos o dia 30 de julho, este sábado, para lembrar, conscientizar, divulgar e prevenir a venda de corpos, dignidades e liberdades.
Esta data foi proposta pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) como Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, e adotada, no Brasil, como o Dia Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, pela lei nº 13.344/2016.
O dia é de luta e de urgência. A comunicação é uma forma poderosa para uma coletividade mais comprometida com a liberdade, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. A tarefa de enfrentamento é necessária e transformadora. Quem sabe, ainda, viveremos o tempo dos dias sem tráfico de pessoas?
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