Entenda por que a Rússia roubou ossada de príncipe Potemkin da Ucrânia

Historiador prevê uso ultranacionalista de restos mortais de comandante militar do século 18 que ajudou a conquistar território

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Marc Santora
Kiev | The New York Times

Com as forças ucranianas avançando sobre a cidade ocupada de Kherson nos últimos dias, os líderes locais instalados pelo Kremlin enviaram uma equipe a uma catedral de pedra do século 18 para cumprir uma missão especial: roubar a ossada do príncipe Grigori Aleksandrovich Potemkin.

A memória do conquistador do século 18 ainda vive forte entre aqueles no Kremlin determinados a restaurar o império russo. Foi Potemkin quem convenceu sua amante, Catarina, a Grande, a anexar a Crimeia em 1783. Fundador de Kherson e Odessa, Potemkin buscou criar uma "Nova Rússia" —um domínio que se estendia pelo território que hoje é o sul da Ucrânia, margeando o mar Negro.

Em fevereiro, quando o presidente russo Vladimir Putin invadiu a Ucrânia, ele evocou a visão de Potemkin.

A catedral de Santa Catarina, onde estavam os ossos de Potemkin - De Dmitro/AdobeStock

Agora que seu Exército fracassou na marcha sobre Odessa e está ameaçado de ser expulso de Kherson, Putin vê seus grandiosos planos comprometidos. Mas, para os seguidores fiéis do Kremlin, a crença no que enxergam como sendo o império de direito da Rússia ainda é forte.

Foi por tudo isso que uma equipe desceu para a cripta sob uma lápide de mármore branco no interior da catedral de Santa Catarina. Para alcançar os restos mortais de Potemkin, eles teriam aberto um alçapão e descido um corredor estreito. Ali teriam encontrado um caixão de madeira colocado sobre um estrado elevado e marcado apenas com uma cruz simples.

Sob a tampa do caixão, um pequeno saco preto continha a caveira e os ossos de Potemkin, cuidadosamente numerados.

Representantes do Kremlin não tentaram esconder o roubo —muito pelo contrário. O chefe da região de Kherson nomeado pela Rússia, Vladimir Saldo, disse que, com as tropas ucranianas se aproximando da cidade, os restos mortais de Potemkin foram levados da cidade, situada na margem ocidental do rio Dnieper, para um local não revelado a leste do rio.

"Levamos os restos mortais do príncipe sagrado que estavam na catedral de Santa Catarina", disse Saldo em entrevista transmitida pela televisão russa. "Transportamos o próprio Potemkin."

Ativistas ucranianos locais confirmaram que a igreja foi saqueada e que, além da ossada, foram levadas estátuas de heróis russos venerados. Segundo as contas do historiador Simon Sebag Montefiore, autor do livro "Catherine the Great and Potemkin", esta foi a nona interrupção do descanso em paz dos restos de Potemkin.

Em entrevista que deu pouco após o lançamento de seu livro, em 2000, Montefiore disse que o Kremlin o contatou para dizer o quanto Putin admirava o trabalho dele. Na última quinta-feira (27), ele contou que a leitura histórica feita por Putin é profundamente equivocada e que a guerra reduziu a ruínas cidades ucranianas como Mariupol e Mikolaiv —que Potemkin e os primeiros imperialistas russos ajudaram a erguer.

A escadaria de Potemkin, com a estátua de Richelieu protegida contra ataques russos, em Odessa - Oleksandr Guimanov - 13.out.22/AFP

(O termo "vilarejo de Potemkin" foi cunhado para descrever uma fachada impressionante construída para ocultar uma realidade indesejável. Mas Montefiore diz que o termo foi atribuído incorretamente ao príncipe, cujas realizações na atual Ucrânia foram reais.)

"Potemkin desprezaria Putin e tudo o que Putin representa", diz o historiador. Segundo ele, Potemkin e Catarina viam a região como uma janela cosmopolita para o Mediterrâneo, povoada por um misto vibrante de pessoas de etnias e origens nacionais diferentes.

Para ele, com a destruição das cidades que o príncipe ajudou a construir, o líder russo está desempenhando o papel de destruidor desses triunfos anteriores.

O saque do túmulo segue os mesmos moldes dos esforços de Moscou para aniquilar a identidade ucraniana. Forças russas vêm destruindo e saqueando sistematicamente tesouros ucranianos, incluindo igrejas ortodoxas, monumentos nacionais e sítios que fazem parte do patrimônio cultural da Ucrânia. Elas enviaram especialistas para roubar artefatos de ouro da cultura cita que remontam a 2.300 anos.

Até 24 de outubro, a Unesco, agência das Nações Unidas, havia documentado depredação e danos em mais de 200 locais culturais ucranianos.

Retrato de Potemkin - Wikimedia

Mas a ossada do famoso estadista e comandante militar possui importância extra para o Kremlin. Montefiore, que descreveu em seu livro "o estilo de vida libertino e os triunfos políticos exuberantes" de Potemkin e Catarina, destacou o lugar especial na história que os dois ocupam para Putin e os ultranacionalistas em seu esforço para fundir "a majestade dourada do império dos Romanov com a glória sombria de uma superpotência stalinista, para formar um híbrido moderno peculiar".

Durante as pesquisas para subsidiar seu livro, Montefiore foi à catedral de Santa Catarina para ver os restos mortais de Potemkin, que, segundo escreveu, ainda estavam guardados num saco preto simples dentro do caixão de madeira.

Não está claro onde estão agora ou o que o Kremlin pretende fazer com eles. Montefiore prevê que a ossada de Potemkin acabe sendo levada à Rússia, onde poderá fazer parte de um "espetáculo televisivo de ultranacionalismo grosseiro".

Tradução de Clara Allain

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