Descrição de chapéu The New York Times

Lentidão de autoridades da Coreia do Sul agravou tragédia no Halloween

Episódio despertou insatisfação popular que agora pressiona presidente Yoon Suk-yeol e sua guerra antidrogas

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Choe Sang-Hun
Seul | The New York Times

Autoridades da Coreia do Sul sabiam havia anos que o fim da semana do Halloween em Itaewon atraía multidões. Circulavam alertas internos sobre a possibilidade de pessoas morrerem esmagadas.

Durante dias houve reuniões e relatórios sobre a expectativa de se formarem "turbas desordeiras". Um chefe de polícia pediu a superiores que enviassem tropas para controlar multidões. Durante horas foram recebidos telefonemas desesperados sobre foliões encurralados numa viela estreita, com súplicas para uma intervenção.

Sul-coreanos realizam vigília em homenagem aos 156 mortos na celebração do Halloween em Seul - Anthony Wllace - 5.nov.22/AFP

A cada vez as autoridades ignoraram os avisos ou os deixaram passar sem nada fazer. Teriam sido oportunidades cruciais para prevenir uma aglomeração no último 29 na qual 158 pessoas morreram e 196 ficaram feridas.

Uma análise do New York Times, baseada em relatos de testemunhas, conclusões de investigadores, depoimentos de parlamentares e documentos oficiais, traz novos e perturbadores detalhes sobre a abordagem negligente do governo sul-coreano à segurança e as falhas de sua resposta emergencial.

Até as 20h do horário local, quase uma hora e meia após o primeiro telefonema pedindo socorro, havia menos de uma dúzia de policiais na área. Serviços de emergência enviaram agentes para brigas de ruas e incidentes menores enquanto os que monitoravam câmeras de vigilância não notaram nada de anormal.

A falta de coordenação atrasou os esforços de socorro e a administração de crise. Muitos supervisores e dirigentes só tomaram conhecimento da situação às 23h ou mais tarde.

Agora, parlamentares e autoridades investigam o que deu errado, especialmente para saber por que os primeiros sinais não foram flagrados e por que se levou tanto tempo para enviar ajuda. "Foi um desastre criado por incompetência administrativa", diz o deputado independente Min Hyungbae. "É como se nosso país estivesse andando para trás."

A polícia, o corpo de bombeiros e várias agências envolvidas se negaram a fazer comentários. O gabinete presidencial informou que encomendou uma investigação completa e vai adotar medidas com base nos resultados dela.

Apesar de suas conquistas tecnológicas, econômicas e culturais, a Coreia do Sul tem sofrido uma série de desastres decorrentes de causas humanas, incluindo o desabamento de uma loja de conveniência, o naufrágio de uma balsa e incêndios catastróficos.

Até mudar-se para uma nova residência oficial, o presidente , Yoon Suk-yeol, viveu num edifício construído no local do desabamento da loja de departamentos. Em abril, no oitavo aniversário do desastre com a balsa, ele disse que "a maneira mais sincera de honrar a memória das vítimas é fazer da Coreia do Sul um lugar seguro".

Quando milhares de pessoas se reuniram num ato público para chorar a tragédia de Itaewon, os manifestantes o criticaram por não ter cumprido a promessa. "A melhor maneira de honrar a memória das vítimas é você renunciar!", gritaram.

Primeiros sinais foram ignorados

A festa do Halloween, a primeira desde o fim das restrições impostas devido à pandemia, prometia ser grande. Autoridades discutiram maneiras de garantir a segurança na noite e controlar multidões, compartilhando receios sobre pessoas transbordarem para as faixas da avenida, homens "brandindo armas de brinquedo" e "garotas de biquíni" que poderiam se expor demais.

É o que revelam documentos oficiais da polícia, dos bombeiros e da administração do distrito de Yongsan. A polícia viu um aumento no número de buscas na internet por "Halloween" e "Itaewon".

A popularidade do feriado e o potencial de acidentes preocupavam as autoridades havia muito. Em 2020, quando a multidão no Halloween foi menor, a polícia já avisou num documento interno, ao qual parlamentares oposicionistas tiveram acesso, sobre a possibilidade de "mortes num empurra-empurra".

O labirinto de bares e restaurantes ficou mais apertado devido a construções não autorizadas, como a de um muro metálico no hotel Hamilton, encolhendo ainda mais as ruelas em volta, segundo a polícia. As autoridades locais de Yongsan impuseram multas, mas não fizeram nada para remover as estruturas ilegais. O hotel não deu declarações, citando investigações pendentes.

A Coreia do Sul tem batalhões de policiais que fazem treinamento especializado de controle de multidões. No dia da tragédia, 4.700 agentes estavam posicionados ao longo da avenida entre o centro de Seul e o gabinete presidencial, a menos de 1,6 km de Itaewon, para monitorar dezenas de milhares de manifestantes insatisfeitos com o presidente. Nenhum deles foi enviado para Itaewon, onde havia 130 mil pessoas.

Dias antes da tragédia, a delegacia de Yongsan pediu várias vezes à Polícia Metropolitana de Seul que agentes treinados fossem enviados a Itaewon no Halloween, conforme disse ao Parlamento o chefe local da corporação, Lee Im-jae. Ele teria ouvido que os profissionais não poderiam ser desviados dos atos políticos.

Em 25 de outubro o chefe da delegacia de Itaewon, menor que a de Yongsan e sob a supervisão desta, disse a seus superiores que precisava desesperadamente de mais agentes para controlar o tráfego no Halloween, revelaram depoimentos no Parlamento do chefe de polícia de Seul e de deputados oposicionistas.

Mas no dia seguinte, quando lideranças policiais e da prefeitura se reuniram com donos de estabelecimentos comerciais para discutir a festa, não traçaram planos para controlar a multidão, disse o superintendente-geral da Agência Nacional de Polícia.

Em 29 de outubro, 137 policiais foram enviados a Itaewon, dos quais 52 eram detetives especializados em crimes envolvendo drogas.

O chefe da polícia metropolitana de Seul, Kim Kwang-ho, disse ao Parlamento, quando lhe foi perguntado se a guerra do governo às drogas desviou a atenção dos agentes, que "estávamos fortemente focados sobre as drogas".

Mas o gabinete do presidente disse que a tragédia não guarda relação com sua nova campanha antidrogas. Em vez disso, criticou a polícia e outras agências por não terem previsto a possibilidade de acidentes.

Súplicas desesperadas foram ignoradas

A polícia planejara enviar a maioria dos 137 agentes a partir das 20h, com base na movimentação do Halloween nos anos anteriores. Até as 20h havia apenas 11 policiais, segundo o deputado Lee Hyungseok.

O novo mapa digital da cidade estava em operação para rastrear densidades em tempo real, caso as autoridades quisessem monitorar a multidão. Em separado, segundo Kim Sung-ho, funcionário-sênior do Ministério do Interior, a administração de Yongsan não informou qualquer movimento anormal.

Às 18h34, o número de emergência 112 começou a receber ligações desesperadas. Segundo gravações, pessoas relataram que a situação era de "caos absoluto" e que a multidão estava fora de controle. "Parece que pessoas vão morrer esmagadas", disse a primeira que telefonou. Até 22h11, houve mais dez telefonemas apontando uma aglomeração perigosa.

A primeira ligação foi ignorada, vista como nada de sério, disse a jornalistas um funcionário-sênior da Agência Nacional de Polícia. Tampouco foram tomadas medidas após ligações subsequentes.

Superiores também não detectaram que uma crise estava se formando, segundo a superintendente-sênior Ryu Mi-jin, que estava em sua sala de trabalho. "Só posso dizer que lamento muito", disse Ryu numa audiência parlamentar, acrescentando que é de praxe o supervisor ficar em local separado. Ela disse que só foi informada da crise às 23h39, quase uma hora depois de socorristas chegarem ao local.

Kim Baek-gyeom, sargento da delegacia de Itaewon, disse que ele e seus colegas passaram o início da noite ocupados com tarefas de rotina. Por volta das 22h foram despachados para checar uma possível briga de rua perto da viela. Quando chegaram ao local, viram a aglomeração.

Uma ligação feita à linha 119 às 22h15 finalmente chamou a atenção das autoridades. "Vocês precisam mandar polícia, carros de bombeiros, tudo que tiverem. Tem gente morrendo esmagada aqui", disse a pessoa que fez o telefonema. "Estou vendo feridos espalhados pela rua."

Nas horas seguintes o serviço de emergência recebeu 86 outras ligações. Os telefonistas ouviam berros, choros, gemidos e gritos de "socorro, socorro!" e "não empurre, não empurrem!".

Às 22h42, mais de quatro horas depois do telefonema inicial sobre o aumento da multidão, os bombeiros informaram seu primeiro contato oficial com vítimas e pediram reforços com urgência. "Estamos fazendo RCP [ressuscitamento cardiopulmonar] em 15 pessoas", disse um.

Foi apenas às 22h48 que os detetives da seção de narcóticos –que não prenderam um único usuário de drogas— foram redirecionados para os trabalhos de resgate. Agentes de controle de multidões só foram enviados a Itaewon às 23h40, três horas depois do término dos comícios.

A falta de coordenação complicou os esforços. Um telefonista do Centro Nacional de Emergências Médicas queixou-se com colegas bombeiros e da prefeitura que a polícia estava bloqueando o acesso de socorristas. Em dado momento um telefonista teria ameaçado "parar de enviar nossas equipes".

"Parem agora de transportar os mortos", o telefonista orientou seus colegas do 119. "Primeiro temos que levar as 40 pessoas que ainda estão vivas, inclusive as que estão em estado crítico."

Yoon Suk-yeol, presidente da Coreia do Sul, chega para a cúpula do G20 em Bali, na Indonésia - Mast Irham - 15.nov.22/Pool/AFP

Apontando culpados nos escalões superiores

Os sul-coreanos expressaram gratidão aos socorristas. Encheram o site do corpo de bombeiros de Yongsan com bilhetes de agradecimento e mandaram tangerinas e frango frito à delegacia de Itaewon.

Eles vêm dirigindo sua revolta cada vez às altas autoridades. Num local de luto perto da prefeitura, uma mulher que contou ter perdido o filho na tragédia destruiu uma coroa de flores mandada pelo presidente Yoon. Um cidadão pendurou uma faixa de 15 metros pedindo a renúncia do "presidente constrangedor".

"Funcionários públicos sul-coreanos raramente agem a não ser que seus chefes lhes digam o que fazer", explica Yoon Yong-kyun, professor de segurança pública na Universidade Semyung.

O presidente tomou conhecimento do desastre às 23h01, e seu ministro do Interior, responsável pela polícia e pelos bombeiros, às 23h20. Era quase meia-noite quando a prefeitura enviou mensagens de alerta a celulares pedindo aos cidadãos que evitassem ir a Itaewon.

Kim, chefe de polícia de Seul, só soube o que acontecera quando Lee, de Yongsan, lhe telefonou, às 23h36. Depois de lidar com os protestos políticos, ele próprio planejara acompanhar as festividades do Halloween. Terminou de jantar e dirigiu-se a Itaewon ouvindo comunicações na rádio policial. O trânsito estava intenso e, depois de passar uma hora no carro, ele decidiu seguir a pé. Segundo imagens de câmera de vigilância, caminhou em passo tranquilo, com as mãos às costas.

Ele diria mais tarde, ao Parlamento, que só tomou conhecimento da crise quando chegou a Itaewon, às 23h. "Me sinto profundamente infeliz", disse. "Pelo resto de minha vida serei culpado perante as vítimas e suas famílias."

Tradução de Clara Allain

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