Seca leva fome à Somália, mas governo reluta em declarar crise alimentar

Em 2011, mais de 130 mil morreram antes de fome generalizada ser declarada

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Abdi Latif Dahir
Nairóbi | The New York Times

Em média, uma criança gravemente desnutrida é internada numa clínica na Somália a cada minuto de cada dia. Com as plantações e os animais dizimados devido à pior seca a atingir o país em quatro décadas, milhões de somalis estão à beira da inanição, numa catástrofe humanitária sem precedentes.

Não obstante a crise, o governo somali reluta há meses em declarar que o país enfrenta uma situação de fome generalizada. É o que revelam entrevistas com autoridades governamentais, funcionários de organizações humanitárias e analistas familiarizados com discussões governamentais internas.

Mãe segura filho desnutrido no colo enquanto aguarda atendimento em clínica de Baidoa, na Somália
Mãe segura filho desnutrido no colo enquanto aguarda atendimento em clínica de Baidoa, na Somália - Andrea Bruce - 3.nov.22/The New York Times

Segundo os funcionários humanitários, tal declaração permitiria a chegada de mais assistência, como ocorreu durante a grande fome de 2011, e concentraria a atenção de doadores ocidentais que no momento estão mais preocupados em responder às consequências da Guerra da Ucrânia.

O governo do presidente Hassan Sheikh Mohamud, que chegou ao poder em maio, resiste a caracterizar a situação nesses termos por uma série de razões. Em primeiro lugar, e mais importante, o governo teme que isso enfraqueça a boa vontade com que a população o enxerga e favoreça o grupo terrorista Al Shabab, justamente no momento em que as Forças Armadas lançaram uma ofensiva em grande escala contra os insurgentes, que assolam o país há décadas e continuam a lançar ataques arrasadores.

O governo somali também teme a possibilidade de que uma declaração oficial de fome generalizada provoque um êxodo de habitantes das áreas mais afetadas em direção às grandes cidades, sobrecarregando os recursos já escassos e alimentando uma alta na criminalidade.

Mohamud receia ainda que tal anúncio desencoraje investidores e desvie o dinheiro de assistência internacional para a resposta emergencial –no lugar de investimentos de longo prazo em projetos de desenvolvimento para financiar saúde, educação e programas de resiliência climática.

O presidente reconheceu o dilema em setembro, quando disse que "é muito grande o risco de declarar fome generalizada". Tal declaração, afirmou ele, "não afeta apenas as vítimas da fome –também suspende o desenvolvimento e altera as perspectivas e tudo".

Nas últimas semanas, funcionários de organizações humanitárias frustrados vêm insistindo que os critérios para declarar situação de fome já foram atingidos em algumas regiões. Em diversas reuniões, eles têm pressionado o governo a declarar fome para chamar a atenção para a crise.

A emergência da fome está afetando não apenas a Somália, país de 16 milhões de habitantes: ela atinge estimados 37 milhões de pessoas no Chifre da África. Um dos principais fatores causadores da crise é a crise climática, tema principal da cúpula COP27, que começou no domingo (6), no Egito.

Pequena fazenda cercada por terras secas onde plantações não sobrevivem, nos arredores de Baidoa, no sudoeste da Somália.
Pequena fazenda cercada por terras secas onde plantações não sobrevivem, nos arredores de Baidoa, no sudoeste da Somália - Andrea Bruce - 2.nov.22/The New York Times

Funcionários de organizações humanitárias na Somália temem que se repita o que aconteceu em 2011, quando mais da metade dos quase 260 mil mortos na crise de fome morreram antes de ela ter sido declarada oficialmente. "O governo tem medo da palavra F –fome", disse um humanitarista que pediu anonimato. "Mas a situação é catastrófica, e, quanto mais tempo esperarem, pior ficará."

Abdirahman Abdishakur, enviado do presidente para a resposta à seca, reconheceu que organizações humanitárias vêm pressionando o governo a declarar fome, mas negou que o governo esteja hesitando em fazê-lo. Disse que não há evidências concretas de que o limiar dessa crise já tenha sido ultrapassado.

Disse, também, que os países ricos precisam honrar suas promessas de ajudar países pobres como a Somália a enfrentar os efeitos da crise climática. "A questão não é pagar para fazer caridade ou doar à Somália", disse em entrevista telefônica Abdishakur, que está viajando por capitais ocidentais para promover a conscientização da situação. "Tem a ver também com justiça."

Uma organização especializada que avalia condições de carestia fez uma determinação em relação à Somália, mas não declarou situação de fome generalizada.

Uma crise pode ser caracterizada como sendo de fome generalizada quando 20% das famílias numa região enfrentam falta extrema de alimentos, quando 30% das crianças sofrem de desnutrição aguda ou se dois adultos ou quatro crianças em cada 10 mil estão morrendo de inanição a cada dia. Especialistas podem classificar uma fome generalizada, e organizações humanitárias podem alertar para ela, mas a decisão de declarar uma crise como fome generalizada cabe ao governo de um país e a agências da ONU.

Somalis em campo para deslocados internos aguardam a retirada de água de poço em Baidoa.
Somalis em campo para deslocados internos aguardam a retirada de água de poço em Baidoa - Andrea Bruce - 3.nov.22/The New York Times

Segundo Mohamed Husein Gaas, diretor do Instituto Raad de Pesquisas sobre a Paz, em Mogadício, ao resistirem a declarar a fome, as autoridades somalis querem ganhar tempo, na esperança de que os recursos muito necessários acabem se concretizando de qualquer maneira.

"Mas essa não é uma política boa", disse Gaas. "Precisamos agir prontamente e salvar vidas."

Nimo Hassan, diretora do Consórcio Somali de Organizações Não Governamentais, disse que as definições técnicas de fome generalizada não devem servir de desculpa para a inércia. "A situação está ultrapassando os recursos disponíveis. Estamos tentando pingar gotas de água na boca de alguém que precisa beber urgentemente", disse ela.

A revisão mais recente da situação na Somália, divulgada em setembro, projetou que a fome generalizada ocorreria em dois distritos da região da baía sul entre outubro e dezembro e que as condições de seca grave persistirão até o início de 2023. É possível que a fome já seja declarada em áreas fortemente afetadas. Especialistas da ONU acabam de concluir uma coleta de dados sobre a situação da seca e estão analisando os dados, com a previsão de levá-los a público em meados de novembro. É possível que isso incentive as autoridades a fazer uma declaração formal de situação de fome generalizada.

Agências humanitárias dizem que, desde setembro, quando a ONU afirmou que a fome generalizada estava "prestes a chegar" à Somália, a assistência internacional vem aumentando, especialmente dos Estados Unidos. Mas peritos dizem que os esforços de arrecadação de fundos não estão aumentando com a rapidez necessária e que os doadores deveriam ter reagido aos avisos precoces divulgados no ano passado para impedir as mortes e os deslocamentos em grande escala que estão ocorrendo agora.

"A pergunta que todos deveríamos estar nos colocando é a extensão da perda de vidas humanas, não se está faltando ou sobrando um centímetro em relação a alguns limiares", disse Daniel Maxwell, professor de segurança alimentar na Universidade Tufts e membro do Comitê de Revisão da Fome na Somália.

"Os apelos por ajuda agora já estão claros."

Tradução de Clara Allain

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