Capital da Ucrânia tenta driblar caos energético com geradores e fogueiras

Kiev se adapta a blecautes prolongados provocados por ataques russos à infraestrutura urbana

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Marc Santora
Kiev | The New York Times

Suprimentos de emergência foram estocados em elevadores de toda a capital ucraniana, para o caso de a eletricidade acabar. Bancos enviaram mensagens a seus clientes para lhes garantir que o dinheiro estará em segurança em caso de blecautes prolongados.

Na noite de terça (29), a orquestra Filarmônica Nacional tocou num palco iluminado por lanternas a pilha, e, na semana passada, médicos fizeram cirurgias à luz de faroletes. Esta é Kiev, uma capital europeia moderna com 3,3 milhões de habitantes, hoje uma cidade devastada pela guerra e que enfrenta falta de eletricidade, água corrente, sinal de celular, aquecimento e conexão com a internet.

Mulher com lanterna passa por loja também iluminada por lanternas em passagem subterrânea em um bairro em Kiev
Mulher com lanterna passa por loja também iluminada por lanternas em passagem subterrânea em um bairro em Kiev - David Guttenfelder/The New York Times

Um café popular criou dois cardápios. Um deles inclui comida aquecida, como massas caseiras, para quando o café tem eletricidade. O segundo oferece pratos frios –iogurte grego com granola e purê de maçã, por exemplo—, para quando não há luz.

Em outro restaurante, um chef cozinhava sobre uma grelha montada na calçada, enquanto dois rapazes esquentavam as mãos sobre as brasas. O sol se põe cedo, antes do final do dia letivo, e as crianças seguram faroletes enquanto aguardam na escuridão total a chegada de seus pais para buscá-las.

Geradores elétricos de todos os tamanhos rugem por toda a cidade, onde autoridades municipais estimam que 1,5 milhão de pessoas ainda estão passando mais de 12 horas por dia sem eletricidade.

Kiev ficara relativamente ilesa desde a primavera, mas nos últimos meses voltou a virar alvo. A Rússia lançou ondas de mísseis contra a rede elétrica ucraniana.

Após nove meses de guerra, nada é tão inusitado que chegue a provocar choque, mas os ataques à rede elétrica estão deixando os moradores de Kiev exaustos e exasperados. Com a temperatura na cidade frequentemente caindo para abaixo do zero, os blecautes extensos têm efeito potencialmente letal, afetando o sistema de saúde, elevando o risco de hipotermia e aumentando o número de acidentes.

Ao mesmo tempo em que equipes técnicas trabalham 24 horas por dia para reparar os danos provocados pela onda mais recente de mísseis –que, na semana passada, desativaram temporariamente todas as usinas nucleares do país–, as autoridades emitiram um aviso urgente alertando para a possibilidade de mais uma onda de mísseis estar a caminho.

"A gente vai dormir sabendo que hoje foi ruim e amanhã pode ser ainda pior", disse na segunda (28) o músico Vlad Medik, 25. Ele afastou sua cama das janelas, caso um míssil russo exploda por perto, e se assegura de seu celular estar totalmente carregado antes de ir dormir, para poder ouvir qualquer alarme de ataque. Enquanto falava, estava improvisando uma cobertura de caixas de papelão para proteger um novo gerador da neve que caía diante da loja de música onde trabalha.

Na semana passada, o céu acima de Kiev trovejou quando 20 mísseis russos foram derrubados ao passar sobre a capital. Uma dúzia de outros encontrou alvos. Os mísseis faziam parte de mais de 600 que a Rússia lançou desde outubro contra alvos de infraestrutura. Os danos provocados pelo ataque mais recente estão sendo os mais difíceis de superar. Uma semana mais tarde, a maioria dos habitantes da capital ainda não sabe quando o fornecimento de eletricidade vai se normalizar.

Herman Haluchtchenko, ministro da Energia, disse na quarta (30) que a estabilidade do fornecimento de energia está "melhorando a cada dia que passa". "Se não houver novos ataques contra a rede elétrica –e isso é crucial–, no futuro próximo conseguiremos estabilizar e reduzir a duração dos blecautes."

Mas as dificuldades enfrentadas nesta última semana levaram Vlad Medik a mudar sua perspectiva. Um dos mísseis destruiu um estúdio musical num parque industrial na periferia de Kiev onde ele toca com sua banda Onaway. O míssil matou dois seguranças e uma mulher que estava no local.

Traçar planos para o futuro é um luxo que ele diz não ter. Medik está tentando sobreviver no presente. "Você não pensa em entretenimento, não pensa no trabalho que realmente lhe dá prazer", diz. "Pensa em coisas banais, coisas de sobrevivência. Tudo se resume a isso."

As dificuldades podem ser extremas aos mais vulneráveis: idosos com problemas para subir escadarias escuras para chegar às suas casas em andares elevados; doentes que precisam de atendimento urgente; crianças traumatizadas que anseiam por rotina. Para outros, é uma vida estranha e cansativa.

Mas, em meio a todo o estresse e o perigo, os moradores de Kiev continuam firmes, comparecendo para trabalhar, cuidando de suas famílias, colaborando para ajudar outras pessoas em situação de necessidade e até mesmo se permitindo alguns pequenos prazeres.

Members of the National Philharmonic perform in a dark theater in Ukraine?s capital, Kyiv, Nov. 29, 2022. After months of repeated Russian strikes, Ukraine?s capital can no longer take electricity, water, heat, cell service or internet for granted. (David Guttenfelder/The New York Times)
Membros da Orquestra Filarmônica ensaia com luz de velas em Kiev - David Guttenfelder - 29.nov.22/The New York Times

Marina Musat, 38, é massagista e trabalha no centro de Kiev. Ela contou que ficou surpresa pelo fato de nem uma única cliente ter cancelado massagens recentemente. "Vamos continuar a fazer nosso trabalho, apesar da escuridão." Mesmo num dia da semana passada, quando houve repetidas explosões aéreas, uma cliente conseguiu se comunicar com a massagista para marcar um atendimento.

"Então peguei minha bolsa e fui trabalhar", conta. "É um pouco deprimente quando você tem que trabalhar por horas no escuro total, mas aprendi a massagear de olhos fechados."

No bairro de Podil, o distrito comercial mais antigo da capital, geradores forneciam eletricidade a farmácias, restaurantes, clínicas, hotéis e lojas de artigos esportivos. Os estabelecimentos pareciam estar determinados a manter suas portas abertas. Se um coquetel Molotov foi o símbolo de desafio para o exército de cidadãos comuns como baristas, zeladores e contadores que surgiu logo após a invasão russa, nove meses atrás, hoje o gerador elétrico é a arma mais procurada no front energético.

A imprevisibilidade leva à improvisação. "Criamos os menus ‘cozinha com luz’ e ‘cozinha com gerador’. Assim todo mundo terá algo para comer e beber", diz Valeria Mamicheveva, 20, do café do Hotel Bursa.

No momento, ela contou, o café estava funcionando com energia de gerador, razão por que tinha que limitar o consumo e a máquina de café expresso não podia ser usada. "Temos chá, temos bebida alcoólica, quando é aceitável vendê-la, e temos café de filtro."

Valeria sorria, mas seus olhos traíam seu cansaço. Um alarme de ataque aéreo acabara de parar de tocar, e ela confessou que estava exausta. "Por conta da ansiedade, da preocupação constante, não me sobra energia nenhuma." Mas, mesmo com todas as dificuldades, ela não quer sair de Kiev.

"Não há lugar melhor que a casa da gente, e percebi que se eu for para outro lugar vou sentir saudades de casa. Então decidi ficar aqui mesmo e ajudar a economia de algum jeito."

Tradução de Clara Allain

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