Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Kiev finge ter vida normal em meio a traumas de 6 meses de Guerra da Ucrânia

Capital do país convive com sirenes para ações da Rússia e abrigos antibombas enquanto busca retomar atividades

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São Paulo

Irina Nemirovitch, 33, já voltou a trabalhar como de costume no escritório de sua empresa, no centro de Kiev, três dias por semana. Toma banho e café da manhã em casa, veste roupas leves por causa do verão e se locomove no transporte público. Ao sair do escritório, quando possível, sai para encontrar os amigos no apartamento de um deles.

Mas não são raras as ocasiões em que ela precisa interromper o serviço para se esconder em um abrigo —são até quatro vezes no mesmo dia. A sirene tocando na capital da Ucrânia alerta para o risco de mísseis russos, mas Irina já não se espanta, conforme seu relato à Folha.

A cena se tornou parte da rotina de quem mora em Kiev seis meses depois de as tropas de Moscou invadirem o país sob ordens de Vladimir Putin.

Moradores de Kiev relaxam nas margens do rio Dnipro
Moradores de Kiev relaxam nas margens do rio Dnipro - Jim Huylebroek - 22.ago.22/The New York Times

"Os cidadãos fingem ter uma vida normal, mas há vários obstáculos que não nos dão chance de voltar a viver como antes", diz Irina, diretora-executiva de um think tank de saúde. Ela precisou se mudar para a casa dos pais, na vila de Muzitchi, a 35 quilômetros do centro. Isso porque seu apartamento em Kiev fica a poucos metros de uma universidade militar —vista como potencial alvo dos russos.

Irina tem mais um motivo para se preocupar: está grávida de sete meses de um menino. Ela não decidiu se continuará na capital após o nascimento de seu primeiro filho, para o qual ainda nem escolheu o nome. "A gestação não está sendo o que eu sonhava, mas estar grávida me deixa calma e esperançosa. Mesmo assim, tenho muito medo de como será a minha vida quando o bebê nascer."

Parte das crianças de Kiev deve voltar às salas de aula em setembro, depois de passarem os últimos seis meses em modelo de educação remota —devido ao conflito, não à pandemia. Segundo o Ministério do Interior, 23% das escolas de todo o país receberão os alunos presencialmente; só as instituições com abrigos antibombas tiveram autorização para a volta dos alunos. As demais adotarão um sistema híbrido ou continuarão com as aulas online.

A guerra também mudou radicalmente os planos dos recém-formados na capital. O engenheiro de projetos Serhii Hron, 25, tinha vários objetivos para os próximos anos, mas agora só pensa em como ajudar sua família, que mora em Tchernihiv –cidade ucraniana próxima das bases russas na Belarus.

Em 24 de fevereiro, quando a Rússia deu início à invasão, Hron estava a trabalho em Lviv, no oeste do país, mais próximo da fronteira com a Polônia. "Fui imediatamente ao Exército e pedi armas e equipamentos para lutar", conta. Como não tem experiência militar, acabou mandado de volta para casa.

Em Kiev, ele hoje evita ir a bares, restaurantes e boates, como fazia antes de tudo mudar. Agora, diz que só consegue pensar em guerra: seu tempo livre é dividido entre as aulas de inglês e atividades ligadas ao conflito —ler notícias sobre o front e juntar dinheiro para fazer doações às forças ucranianas.

Como a disputa completa seis meses sem data ou perspectiva para acabar, há os que de certa forma parecem ter se habituado aos riscos e encontram espaço para curtir o verão de Kiev. Segundo relatos da mídia local, é cada vez mais comum que praias e espaços culturais fiquem lotados. A capital, aliás, foi palco da primeira partida da nova temporada do futebol ucraniano na terça (23) —ainda que o 0 a 0 entre Shakhtar Donetsk e Metalist tenha se dado sem torcida e com proteção do Exército.

Kiev também é conhecida por suas festas de música eletrônica, mas a batida não afastou a guerra do cotidiano. Os eventos não costumam passar das 22h, porque todas as luzes da cidade se apagam às 23h e, nesse horário, todos os moradores precisam estar em casa.

"Os restaurantes funcionam quase que normalmente, mas os jantares começam mais cedo. A cozinha antes fechava às 22h, mas agora encerra às 20h, para dar tempo de os funcionários limparem o local e ir embora", diz o diretor de investimentos Celso Filho, 33, brasileiro que mora em Kiev há dois anos.

Como grande parte da população local, ele já não sente mais medo quando a sirene toca e deixou de se abrigar todas as vezes em lugares considerados seguros pelo governo. "Há sirenes todos os dias, mas as pessoas já estão ignorando. Eu mesmo não faço nada, apesar de morar ao lado de um bunker."

Cadetes da escola militar Volodimir, o Grande, participam de uma "aula patriótica" em Kiev
Cadetes da escola militar Volodimir, o Grande, participam de uma 'aula patriótica' em Kiev - Serguei Supinski - 27.jul.22/AFP

O cenário de ausência de medo, porém, está sob risco nesta quarta (24), quando por uma coincidência com os seis meses de guerra a Ucrânia comemora 31 anos de independência do domínio soviético. No fim de semana, o presidente Volodimir Zelenski fez novo alerta sobre o risco de "ataques brutais" contra a capital, e autoridades locais proibiram grandes eventos públicos, comícios e desfiles ligados à efeméride.

Para o brasileiro, o dia promete ser mais tenso. "É o principal feriado do país. Nesse dia, eu prestarei mais atenção às sirenes".

Seja como for, os moradores de Kiev sabem que, enquanto houver guerra, a normalidade de fato na cidade não existirá. "Nós não amamos lutar; só queremos nosso território de volta e viver calmamente", diz Hron.

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