Soldados russos relatam derrotas na Ucrânia ante soberba de seus comandantes

Investigação do New York Times, com entrevistas com combatentes, altos oficiais e confidentes de Putin, mostra erros de Moscou

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The New York Times

Eles não tiveram a menor chance.

Avançando às cegas, atravessando sítios cheios de crateras, as tropas da 155ª Brigada de Infantaria Naval da Rússia não tinham mapas, kits de prontos-socorros ou walkie-talkies que funcionassem. Apenas algumas semanas antes, eles eram operários de fábricas e caminhoneiros. Em casa, antes de serem convocados para o alistamento militar obrigatório, em setembro, assistiam na televisão estatal a uma sucessão interminável de supostas vitórias militares russas. Um paramédico era um ex-barista que nunca havia recebido nenhum tipo de formação médica.

Agora, estavam comprimidos em veículos blindados superlotados, atravessando campos no outono com rifles Kalashnikov de meio século atrás e praticamente sem nada para comer, conforme contaram. A Rússia estava em guerra havia quase um ano, mas seu exército parecia estar menos preparado que nunca. Entrevistados, homens da brigada disseram que alguns deles nunca haviam disparado uma arma antes. Disseram que, de qualquer maneira, praticamente não tinham balas, muito menos cobertura aérea e artilharia. Mas isso não os assustava muito. Seus comandantes haviam prometido que eles não chegariam a entrar em combate.

Apenas quando morteiros começaram a cair ao redor, cortando seus companheiros em pedaços, eles perceberam que tinham sido seriamente enganados.

Jogado no chão, um soldado russo chamado Mikhail se recordou de ter aberto os olhos e visto uma cena chocante: os corpos despedaçados de seus companheiros espalhados pelo campo. Ele próprio tinha a barriga cortada por estilhaços de bomba. Desesperado para escapar, arrastou-se até um matagal e tentou escavar uma vala com as mãos para se esconder.

Falando por telefone de um hospital militar nos arredores de Moscou, Mikhail contou que 40 dos 60 integrantes de seu pelotão morreram naquele dia do final de outubro, perto da cidade de Pavlivka, no leste da Ucrânia. Apenas oito escaparam sem ferimentos graves.

"Isto daqui não é guerra", disse Mikhail, fazendo força para falar, com falta de ar. "É a destruição do povo russo por seus próprios comandantes."

A guerra do presidente russo Vladimir Putin nunca deveria ter sido assim. Quando o diretor da CIA foi a Moscou no ano passado para advertir Moscou a não invadir a Ucrânia, deparou-se com um Kremlin cheio de autoconfiança. O assessor de segurança nacional de Putin gabou-se das Forças Armadas russas, dizendo que tinham força para resistir até mesmo aos americanos.

Os planos de invasão da Rússia, aos quais o New York Times teve acesso, mostram que os militares previam avançar centenas de quilômetros na Ucrânia e triunfar em questão de dias. Os oficiais foram instruídos a levar seus uniformes de gala e medalhas, prevendo que participariam de paradas militares na capital ucraniana, Kiev.

Mas em vez dessa vitória retumbante, após quase dez meses de guerra, com dezenas de milhares de seus soldados mortos e partes de seu Exército quase em colapso, Putin está diante de algo completamente diferente: a maior calamidade humana e estratégica de seu país desde a queda da União Soviética.

Como é possível que uma das forças militares mais poderosas do mundo, liderada por um estrategista celebrado como Putin, tenha se saído tão mal no confronto com um adversário muito menor e mais fraco? Para juntar as peças que formam a resposta, analisamos centenas de e-mails do governo russo, documentos, planos da invasão, livros contábeis militares e diretivas de propaganda. Ouvimos telefonemas russos do campo de batalha e falamos com dezenas de soldados, oficiais seniores e confidentes de Putin que o conhecem há décadas.

A investigação do New York Times trouxe à tona uma enxurrada espantosa de erros que começaram com Putin —profundamente isolado na pandemia, obcecado com seu legado, convencido de sua própria genialidade— e continuaram muito depois de soldados como Mikhail serem enviados para o abate.

As falhas encontradas a cada passo foram mais profundas do que era sabido até agora:

  • Em entrevistas, pessoas ligadas a Putin disseram que o presidente russo mergulhou no autoengrandecimento e no fanatismo antiocidental, que o levaram a tomar a decisão fatídica de invadir a Ucrânia de modo quase completamente isolado, sem consultar especialistas que enxergavam a guerra como insensatez absoluta. Assessores e seguidores alimentaram seus muitos rancores e suspeitas num círculo de feedback constante que um ex-confidente comparou ao efeito radicalizador de um algoritmo de mídia social. Mesmo alguns dos assessores mais próximos do presidente não foram informados de nada até os tanques começarem a avançar. Como disse um outro confidente de longa data do presidente, "Putin decidiu que bastava sua própria decisão".
  • As Forças Armadas russas, apesar das ideias preconcebidas do Ocidente sobre sua potência, estavam gravemente comprometidas, enfraquecidas por anos de roubalheira. Centenas de bilhões de dólares foram dedicados à sua modernização sob Putin, mas milhares de oficiais se envolveram em escândalos de corrupção. Um prestador de serviços às Forças Armadas descreveu um esforço frenético de pendurar enormes faixas com mensagens patrióticas para esconder as condições decrépitas numa importante base russa de tanques, na esperança de enganar uma delegação de altos representantes do governo. Os visitantes chegaram a ser impedidos de entrar na base para usar o banheiro, ele contou, para que não descobrissem o embuste.
  • Quando a invasão começou, no final de fevereiro, a Rússia desperdiçou sua vantagem em relação a Ucrânia, cometendo uma sequência de erros. Baseou-se em mapas velhos e inteligência equivocada para disparar seus mísseis, deixando as defesas antiaéreas ucranianas surpreendentemente intactas, prontas para defender o país. Os célebres esquadrões de hackers russos tentaram, mas não conseguiram vencer o que alguns assessores caracterizaram como o primeiro teste importante do uso de armas cibernéticas numa guerra real. Soldados russos, muitos deles chocados ao descobrir que iriam travar uma guerra, usaram seus celulares para ligar para casa, possibilitando aos ucranianos rastreá-los e matar um grande número deles. E as Forças Armadas russas se mostraram tão lentas e esclerosadas que não se adaptaram, nem sequer depois de sofrer baixas enormes no campo de batalha. Enquanto seus aviões estavam sendo abatidos, muitos pilotos russos voaram como se não enfrentassem perigo algum —quase como se estivessem num show aéreo.
  • Com forças insuficientes para realizar suas grandes ambições, a Rússia tomou mais território do que era capaz de defender, deixando milhares de quilômetros quadrados nas mãos de equipes de combatentes mal alimentados, mal equipados, pouco treinados e em número insuficiente. Muitos eram recrutas ou separatistas mal equipados do leste dividido da Ucrânia, com equipamentos dos anos 1940 e dispondo de pouco mais que instruções baixadas da internet sobre como usar um fuzil, fato que sugere que os soldados aprenderam a combater na prática, sem treino anterior. Munidos de armas novas obtidas do Ocidente, os ucranianos os repeliram, mas os comandantes russos continuaram a mandar ondas de tropas terrestres em repetidos ataques sem sentido. Um soldado russo disse que, quando recebeu ordens de participar de uma quinta marcha diretamente na direção da artilharia ucraniana, entendeu: "Ninguém vai sair daqui vivo". Ele e seus camaradas desmoralizados acabaram se recusando a seguir adiante.
  • Putin dividiu sua guerra em zonas de controle separadas, de modo que não sobrou ninguém com poder suficiente para contestá-lo. Muitos de seus combatentes são comandados por pessoas que nem sequer integram as forças armadas, como seu antigo guarda-costas, o líder da Tchetchênia e um chefe mercenário que já foi responsável pelo bufê de eventos do Kremlin. Com o fracasso da invasão inicial, a abordagem fragmentada apenas se aprofundou, enfraquecendo ainda mais um esforço de guerra já desorganizado. Hoje os exércitos divididos de Putin frequentemente atuam como rivais, competindo por armas e às vezes atacando uns aos outros violentamente. Um soldado contou como os enfrentamentos ficaram violentos. Um comandante russo de tanques investiu intencionalmente contra seus supostos aliados e explodiu seu posto de controle.

Desde o início da invasão, Putin, falando reservadamente, tem reconhecido que a guerra não seguiu o rumo planejado.

Numa reunião em março com o primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, Putin admitiu que os ucranianos eram mais resistentes "do que me haviam informado", segundo duas pessoas com conhecimento do encontro. "Provavelmente será muito mais difícil do que previmos. Mas a guerra é no território deles, não no nosso. Somos um país grande e temos paciência."

Pessoas que conhecem Putin dizem que ele se dispõe a sacrificar vidas e dinheiro pelo tempo que for preciso. Num raro encontro cara a cara com os americanos, no mês passado, os russos quiseram transmitir uma mensagem inequívoca ao presidente Joe Biden: não importa quantos soldados russos forem mortos ou feridos no campo de batalha, a Rússia não desistirá.

Um membro da Otan está avisando seus aliados que Putin está preparado para tolerar até 300 mil soldados russos mortos ou feridos —aproximadamente três vezes suas baixas estimadas até agora.

Em setembro, apenas dias depois de enfrentar reações negativas de líderes normalmente amistosos, Putin reafirmou seu engajamento com a invasão, mobilizando centenas de milhares de russos num processo de alistamento militar compulsório. O objetivo era fazer a guerra virar a favor da Rússia, mas, em vez disso, está fomentando insatisfação crescente em casa. Pouco depois disso, centenas de soldados russos foram mortos nos arredores de Pavlivka, incluindo os camaradas recrutas de Mikhail, no avanço cego da 155ª brigada.

"Eram pernas, entranhas. Carne, simplesmente carne", disse outro membro do esquadrão, Alexander, falando de um hospital na Rússia. "Sei que isso soa horrível, mas não há outro jeito de descrever. As pessoas foram convertidas em hambúrguer."

Alexander relatou que ele e seus colegas alistados compulsoriamente perguntaram a seu instrutor na Rússia o que podiam aprender sobre como disparar uma arma e se tornarem soldados nas poucas semanas que tinham antes de ser enviados à Ucrânia.

"Ele foi honesto. Respondeu ‘nada’", disse Alexander.

Quanto mais reveses Putin sofre no campo de batalha, mais aumentam os receios sobre até onde ele se dispõe a ir. Ele já matou dezenas de milhares de pessoas na Ucrânia, arrasou cidades e atacou civis com a finalidade de lhes infligir sofrimento máximo, destruindo hospitais, escolas e prédios residenciais e cortando o acesso de milhões de pessoas à energia e água antes do inverno. Cada vez que as forças ucranianas desferem um golpe importante contra a Rússia, o bombardeio de seu país se intensifica. E Putin já lembrou ao mundo várias vezes que para alcançar o que vê como uma vitória, pode utilizar qualquer coisa que tem à disposição, incluindo armas nucleares.

Ainda em janeiro, quando os Estados Unidos avisaram que uma invasão russa da Ucrânia era iminente, um general russo da reserva chamado Leonid Ivashov enxergou o desastre no horizonte. Numa rara carta aberta, avisou que o uso de força contra a Ucrânia colocaria em risco "a própria existência da Rússia como Estado".

Numa entrevista telefônica recente, Ivashov disse que os avisos que deu antes da guerra ecoaram o que ele vinha ouvindo de oficiais russos nervosos na época. Embora o Kremlin insistisse que não estava prevista uma invasão, alguns oficiais percebiam que a verdade era outra. Membros das Forças Armadas disseram ao general que "uma vitória em tal situação é impossível", mas seus superiores lhes disseram para não se preocuparem. Eles disseram que uma guerra seria "um passeio no parque".

Um oficial ucraniano observa os corpos de soldados russos mortos na Ucrânia, na região de Donetsk, em 7 de outubro de 2022.
Um oficial ucraniano observa os corpos de soldados russos mortos na Ucrânia, na região de Donetsk - Serhii Nuzhnenko - 7.out.22/Reuters

Ivashov disse que os últimos dez meses foram ainda mais trágicos que o previsto. Generais e soldados ucranianos ágeis conseguiram barrar o avanço de um adversário muito maior e mais letal, usando de inteligência. Animado com os êxitos da Ucrânia, o Ocidente vem fornecendo armas cada vez mais poderosas a Kiev para ajudá-la a barrar as forças russas.

"Nunca em sua história a Rússia tomou decisões tão estúpidas", disse Ivashov. "Lamentavelmente, a estupidez saiu ganhando hoje —a estupidez, a cobiça, o espírito vingativo e até uma espécie de má-fé."

O porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, atribui as dificuldades inesperadas da Rússia na guerra ao Ocidente e às armas que ele deu à Ucrânia.

"Este é um fardo grande para nós", disse Peskov, caracterizando a situação como sendo a Rússia enfrentando todo o poderio militar da Otan na Ucrânia. "Foi muito difícil acreditar nesse cinismo e nessa sede de sangue da parte do Ocidente coletivo."

Alguns dos defensores originais da guerra estão começando a encarar seriamente a possibilidade de derrota. Antes da invasão, as agências de inteligência americanas identificaram Oleg Tsariov como um líder fantoche que o Kremlin poderia instalar quando controlasse a Ucrânia. Desde então, Tsariov deixou de sentir confiança na guerra.

"Eu estive lá. Participei" da invasão, ele disse ao New York Times em entrevista telefônica. Mas falou que nunca foi informado dos detalhes finais e que "o Exército russo não entendeu" que os ucranianos iam resistir. Pensaram que "tudo seria fácil".

Agora Tsariov, empresário ucraniano, diz que ficará satisfeito se os combates simplesmente terminarem na situação em que estão hoje —sem a Rússia ter conseguido capturar e conservar o controle de uma única capital regional desde que a invasão começou.

"Estamos perdendo a Ucrânia", ele disse. "Já a perdemos."

Michael Schwirtz , Anton Troianovski , Yousur Al-Hlou , Masha Froliak , Adam Entous e Thomas Gibbons Neff

Tradução de Clara Allain

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