Bolsonaro transformou América do Sul em palco da disputa entre EUA, Rússia e China, diz transição

Documento entregue a Lula lista falhas do Itamaraty bolsonarista e afirma que isolar Venezuela foi 'erro estratégico'

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São Paulo

O relatório final do gabinete de transição afirma que o governo de Jair Bolsonaro (PL) cometeu um "erro estratégico" ao isolar a Venezuela e transformou "a América do Sul em palco da disputa geopolítica entre EUA, Rússia e China."

Segundo o documento obtido pela Folha, que foi encaminhado aos futuros ministros, ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), o governo Bolsonaro desestimulou a integração do Brasil com países vizinhos, o que resultou no "desmonte da Unasul, na saída da Celac e no crescimento de forças favoráveis ao desmantelamento do Mercosul enquanto união aduaneira."

Um diagnóstico mais aprofundado do grupo de trabalho de transição de política externa, que ainda não foi divulgado e será usado internamente no ministério, aborda os caminhos para a reaproximação do Brasil com a América Latina.

Uma das primeiras providências será suspender a portaria que proíbe a entrada de altas autoridades venezuelanas, entre elas o ditador Nicolás Maduro, no Brasil. Além disso, segundo a avaliação do grupo, é necessário reabrir o mais rápido possível a embaixada e o consulado brasileiros em Caracas, fechados desde o início de 2020.

A portaria interministerial baixada em agosto de 2019 impede o ingresso no Brasil de altos funcionários do regime venezuelano porque eles estariam "atentando contra a democracia, a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos". A Venezuela é hoje o segundo país em número de refugiados, com 5,6 milhões, atrás apenas da Síria, que está em guerra civil desde 2011.

No início de 2019, o Brasil e vários países da região —na época liderados por presidentes de direita— passaram a reconhecer Juan Guaidó, então líder da Assembleia Nacional, como legítimo presidente da Venezuela. Desde então, foram congeladas as relações com o regime de Maduro.

A avaliação da transição petista é de que isolar a Venezuela não trouxe nenhum benefício —a situação só piorou. E há cerca de 10 mil brasileiros na Venezuela sem assistência consular.

O embaixador Mauro Vieira, indicado por Lula para o ministério das relações exteriores (MRE), concede entrevista em Brasília.
O embaixador Mauro Vieira, indicado por Lula para o ministério das relações exteriores (MRE), concede entrevista em Brasília. - Pedro Ladeira/Folhapress

O futuro governo Lula, assim como os governos petistas anteriores, afirma acreditar na importância de manter "canais de interlocução" com o chavismo e com Maduro para ajudar na pacificação política do país e impedir que a Venezuela seja transformada em palco de disputa entre EUA, China e Rússia. "De catalisador de processos de integração, o país passou a ser fator de instabilidade regional", diz o relatório.

A Unasul (União de Nações Sul-Americanas) deve se tornar um dos principais foros para a política externa brasileira, ao lado da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e da Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos).

O Brasil deixou a Unasul em novembro de 2019 após um decreto presidencial de Bolsonaro. A avaliação é de que a saída não foi legítima juridicamente, porque só poderia ter sido determinada com a aprovação do Congresso, da mesma maneira que a entrada. Por isso, a ideia é sustar a saída e planejar a reconstrução do foro ao lado de outros membros sul-americanos.

Já a volta à Celac não precisaria de manobras jurídicas. O Brasil abandonou o grupo simplesmente com um anúncio do ex-chanceler Ernesto Araújo. O retorno deve ser anunciado antes da primeira viagem internacional de Lula após a posse; ele vai à Argentina em 24 de janeiro para participar da cúpula da Celac.

O diagnóstico do grupo de transição pede também o fortalecimento da união aduaneira no Mercosul – em outras palavras, o oposto do que vinha pregando Paulo Guedes, ministro da Economia, que defendia a possibilidade de os membros do bloco (Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil) fecharem acordos comerciais de forma independente com países terceiros.

O Uruguai, por exemplo, está em vias de começar a negociar um acordo de livre comércio com a China e acaba de pedir para ser membro da Parceria Trans-Pacífica (renomeada para CPTPP). O presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, tem criticado a lentidão da negociação do acordo entre a União Europeia e o Mercosul e afirma que o Uruguai, um país pequeno, precisa de abertura comercial.

Enquanto há pressa na reintegração latino-americana, o relatório recomenda calma nas negociações para a acessão à OCDE e para o acordo comercial UE-Mercosul. A ideia é avaliar que benefícios reais pode trazer a entrada do Brasil no clube dos países ricos, considerada um "selo de qualidade" para investidores e tratada como prioridade pelos governos de Michel Temer e Bolsonaro.

Em relação ao acordo comercial com a UE, há a percepção de que houve uma negociação às pressas para fechar o tratado ainda durante o governo de Mauricio Macri na Argentina —embora o tratado esteja em negociação há mais de 20 anos— e que seria preciso voltar para a mesa de negociações.

Há duas semanas, o presidente argentino, Alberto Fernández, afirmou que é preciso renegociar o acordo comercial com os europeus, porque ele ameaça a indústria automobilística do Brasil e da Argentina. Mas a ministra do Comércio espanhola, Xiana Mendéz, afirmou ao Financial Times que os europeus "não apoiam a reabertura das negociações".

O relatório final também critica "a participação desastrada em alianças ultraconservadoras" —o Itamaraty bolsonarista se alinhou a países como Polônia e Hungria, em uma aliança "cristã ocidental" em foros multilaterais em questões como saúde reprodutiva e direitos das mulheres.

O governo de transição afirma que o Brasil adotou posições negacionistas e, por isso, "perdeu protagonismo em temas ambientais, desafiou esforços de combate à pandemia e promoveu visão dos direitos humanos inconsistente com sua ordem jurídica".

Ernesto Araújo era cético em relação à existência das mudanças climáticas e dizia se tratar de mais uma estratégia do globalismo para interferir na soberania das nações. O ex-chanceler usou, por exemplo, o neologismo "comunavírus" para se referir a um suposto "vírus ideológico" que se sobrepõe ao coronavírus e faz "despertar para o pesadelo comunista".

Bolsonaro, também um negacionista da Covid, conduziu o Brasil a uma guinada brusca em seus posicionamentos na ONU, deixando de condenar, por exemplo, os assentamentos israelenses e o embargo americano a Cuba.

O grupo de trabalho encerra seu diagnóstico alertando para a dívida do Brasil com organizações internacionais, atualmente em R$ 5,5 bilhões. A dívida "representa grave prejuízo à imagem do país e à sua capacidade de atuação e compromete severamente sua política externa".

"Se um valor mínimo dessa dívida não for pago ainda no atual exercício, haverá perda de voto em organizações como a ONU, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT)", afirma o documento.

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