Descrição de chapéu The New York Times imigrantes

No interior de Québec, uma cidadezinha se rende aos imigrantes

Depois de usar código de conduta para mostrar a estrangeiros que não eram bem-vindos, região adota política pró-imigração

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Norimitsu Onishi
Hérouxville (Quebec) | The New York Times

Durante anos, a cidadezinha no interior de Québec, no Canadá, foi símbolo de uma hostilidade nativista, provinciana e arraigada em relação aos imigrantes. Não havia nenhum por lá, é verdade, mas os líderes da época chegaram a criar um código de conduta para não deixar dúvidas de que os estrangeiros, com seus hábitos e tradições, não eram bem-vindos.

E avisava: "Hérouxville não admite mulheres sendo apedrejadas em praça pública nem queimadas vivas ou tratadas como escravas. A população aqui comemora o Natal e não anda de rosto coberto —com exceção, talvez, do Dia das Bruxas".

Mulher com casaco escuro e gorro caminha por campo coberto por neve
Habiba Hmadi, que imigrou da Tunísia com o marido e dois filhos para Québec, no Canadá - Nasuna Stuart-Ulin/The New York Times

O regulamento resume o grande medo que toma conta da única província francófona do Canadá de que os estrangeiros "diluam" sua cultura. Também levou à criação inédita de uma comissão oficial para a definição em consenso de um "acolhimento razoável" das minorias étnicas, o que torna ainda mais surpreendente a postura municipal atual de não só acolhê-los como atender às suas necessidades.

"Deixamos o passado para trás; agora queremos o maior número possível de imigrantes", confirmou Bernard Thompson, prefeito e antigo defensor do tal código.

A mudança radical na atitude da pequena cidade se dá num momento em que o Canadá pretende se abrir ainda mais ao exterior, em uma estratégia crucial para a vitalidade econômica.

O governo federal anunciou o plano de receber um número recorde de estrangeiros nos próximos três anos, com o objetivo de engrossar em 1,45 milhão a população nacional, atualmente em 39 milhões de habitantes. Ao contrário de outras nações ocidentais, em que decisões semelhantes dividem a sociedade e estimulam a ascensão do extremismo político, no Canadá a importância da imigração é consenso.

A única exceção até agora era Québec, cujos políticos estimulam a anti-imigração baseados no maior medo do eleitor, que é o de perder sua identidade cultural. Mas mesmo ali, em um cenário de exigências demográficas e atitudes sociais em transformação, há sinais de mudança em locais como Hérouxville.

Na pequena cidade, ela se deu, mais especificamente, por uma combinação de fatores, não só o envelhecimento da população, a baixa natalidade e a grande necessidade de mão de obra, mas as alterações profundas nas opiniões das gerações mais novas e a experiência de pessoas como Thompson. "A incapacidade de respeitar a cultura do outro, religiosa ou não, é um erro. É preciso se mostrar aberto."

Uma rua tranquila e com pequenas casas e vista sob o pôr do sol; calçadas e telhados estão cobertos de neve
Centro residencial da cidade de Hérouxville, em Québec; moradia acessível é a principal preocupação das autoridades regionais, que esperam estimular a imigração - Nasuna Stuart-Ulin/The New York Times

Ele é a principal autoridade eleita de Mékinac, que inclui Hérouxville, com população de 1.336 habitantes, e outras nove cidadezinhas, algumas das quais defensoras do código de conduta da vizinha. Em uma ruptura radical com esse passado –que praticamente zerou a imigração na área–, o condado atraiu um número recorde de 60 estrangeiros da América do Sul, da África, da Europa e de outras paragens.

Uma delas é Habiba Hmadi, 40, que chegou há um ano, da Tunísia, com o marido e dois filhos, um menino e uma menina, ambos no ensino fundamental. O casal fala francês e árabe em casa; ela é corretora de seguros, e ele, soldador. "Ficar longe da família é o mais difícil, principalmente no Ramadã e em outros feriados. Para falar a verdade, nunca tinha ouvido falar no tal código; fomos muito bem recebidos. Era gente ligando, vindo aqui, para saber se precisávamos de alguma coisa. Uma das vizinhas trouxe um saco enorme de brinquedos para as crianças. Eu nem a conhecia, ainda estávamos de mudança."

O influxo foi resultado de uma política pró-imigração abrangente adotada pelo condado em 2017 –uma década depois da aprovação do código, em 2007–, quando, em parceria com empresas locais, autoridades passaram a recrutar ativamente profissionais de fora para se estabelecer em uma região habitada praticamente só por quebequenses franceses, longe dos centros multiétnicos como Montreal. Além disso, começaram a preparar a população para a chegada dos novos habitantes e definiram programas para facilitar a adaptação, incluindo um centro social recém-expandido chamado La Maison des Familles.

Resultado: meses atrás, ganhou um prêmio do governo, em reconhecimento às novas políticas. "A chegada dessas 60 pessoas ampliou enormemente nosso universo. Elas têm valores e tradições diferentes, que compartilham conosco e nos permitem enxergar a realidade por outro ângulo. Nosso desejo é que se estabeleçam aqui, sem necessariamente mudar a forma de ser", afirmou Nadia Moreau, diretora de desenvolvimento econômico do condado.

Tanto essa mensagem como a lei de 2017 representam o repúdio oficial à norma que estabeleceu limites intransponíveis entre os moradores e os imigrantes. Se, por um lado, recebia apoio de alguns pontos da província, por outro levou Hérouxville a ser ridicularizada e considerada um reduto de intolerância gratuita –ganhando até um quadro em um programa do canal de TV estatal, a Radio-Canada, mostrando as agruras de um casal de muçulmanos desavisados que foi parar na cidadezinha.

O principal autor da norma foi André Drouin, morto em 2017, que à época de sua criação era vereador. Aliás, era também vizinho de Thompson, e eles se reuniam com frequência para discutir até que ponto os canadenses franceses, ou québécois, deveriam dar espaço a estrangeiros e outras minorias.

Thompson, administrador do site oficial de Hérouxville, disse que editou o esboço inicial, corrigindo erros de grafia e gramática, além de limar o que lhe pareceu serem "referências excessivas a árvores de Natal". Mas viu o carismático Drouin não só convencer a Assembleia local a ratificar sua lei unanimemente, como vender a ideia para a população. "Aqui a gente diz que o André vendia geladeira para esquimó."

Entretanto, tendo trabalhado no setor de telecomunicações durante muitas décadas em Montreal, ele foi ficando cada vez mais incomodado com os trechos mais incendiários da legislação. "Praticamente todo mundo em Québec é filho de imigrantes. E adoro o companheiro da minha irmã, que é muçulmano."

Com o tempo, acabou rompendo com o vizinho e, depois de eleito prefeito, começou um movimento para o arquivamento do código. "Minha intenção era restaurar a boa reputação da cidade; sem contar a necessidade de atrair mão de obra, já que os setores agrícola, florestal, industrial e de serviços de Mékinac estavam em crise. Precisamos dos estrangeiros para sobreviver. Não é questão de escolha."

Ainda assim, alguns políticos conseguiram se aproveitar do sentimento anti-imigração dos eleitores rurais mais idosos. Como Jean Boulet –até recentemente secretário de Imigração da província, nascido em uma cidadezinha vizinha a Hérouxville–, que afirmou falsamente que "80% dos imigrantes vão parar em Montreal, não trabalham, não falam francês e não assimilam os valores da sociedade de Québec".

Um cavalo branco é visto em um campo coberto por neve e cercado, ao fundo, por pinheiros
Um cavalo em uma fazenda perto do centro da cidade de Hérouxville; grande parte da região é agrícola - Nasuna Stuart-Ulin/The New York Times

À porta de uma loja de conveniência da pequena cidade, um homem e uma mulher que fumavam se disseram a favor do código de conduta. E se confessaram revoltados com as histórias amplamente divulgadas do ocorrido nas "cabanas de açúcar" –estabelecimentos que servem pratos tradicionais da culinária quebequense, nos quais é produzido o famoso xarope de bordo–, que tiraram a carne de porco do cardápio para atrair os clientes muçulmanos. "Ficamos sabendo de alguns que até rezam lá dentro. Dentro das nossas cabanas de açúcar! NOSSAS!", desabafou a mulher, que não quis se identificar.

Já para Eva-Marie Nagy-Cloutier, 32, a lei não passa de relíquia do passado. "Somos de uma geração que acredita que você pode ser o que quiser e ficar com quem bem entender", completou ela, que trabalha no RH da Pronovost, empresa local de fabricação de veículos removedores de neve, que recruta imigrantes.

Como Abdelkarim Othmani, 33, que saiu do sul da Tunísia há quase dois anos e dá plantão noturno na companhia como operador de máquinas. No Ramadã, teve permissão para sair mais cedo para o almoço, podendo assim quebrar o jejum à noitinha. "Fiz amizades e vou para a academia com os colegas no fim de semana. Adoro o ambiente daqui. Inclusive quero me casar com minha atual namorada, que está na Tunísia, e trazê-la." Ele se refere à moça como "blonde", uma das gírias locais que já incorporou.

Seu melhor amigo é Alex Béland-Ricard, 29, com quem divide a carona para o serviço. Quebequense da gema, ele se confessou impressionado com a seriedade com que o tunisiano encara a família, o trabalho e as amizades. "Karim é o primeiro imigrante que conheci. Espero que venham muitos mais."

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