Disputa com a China faz EUA venderem submarino nuclear pela 1ª vez em 65 anos

Austrália comprará até cinco unidades, selando pacto para tentar conter Pequim no Indo-Pacífico

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São Paulo

Em um ambicioso passo para tentar conter a assertividade da China, sua rival estratégica na Guerra Fria 2.0, os EUA venderão pela primeira vez em 65 anos submarinos de propulsão nuclear para um aliado.

No caso, a Austrália, que se comprometeu a comprar de três a cinco modelos da classe Virginia, uma embarcação de ataque que pode empregar mísseis de cruzeiro e que começou a ser fabricada no ano 2000, a serem recebidos a partir de 2032.

À frente de um submarino da classe Virginia e de um destróier em San Diego, o premiê Albanese (esq.), Biden e Sunak anunciam detalhes do pacto militar Aukus
À frente de um submarino da classe Virginia e de um destróier em San Diego, o premiê Albanese (esq.), Biden e Sunak anunciam detalhes do pacto militar Aukus - Leah Millis/Reuters

A aquisição, em valores não revelados, sela a primeira etapa do Aukus, o pacto militar negociado secretamente pelo governo de Joe Biden com o da Austrália e do Reino Unido —o nome é um acrônimo unindo os nomes dos países em inglês. O acordo foi anunciado em encontro nesta segunda (13) de Biden com os premiês Rishi Sunak (Reino Unido) e Anthony Albanese (Austrália), em San Diego, escolha simbólica por ser a sede da Frota do Pacífico dos EUA.

"Nossa liderança no Pacífico é benéfica para todos", afirmou Biden. "Hoje é um ponto de inflexão na história. O Aukus mostra o quanto as democracias podem entregar", disse. Sunak criticou a guerra, a China e as ações do Irã e da Coreia do Norte como "desestabilizadoras" ao justificar o militarismo de seu país. "Temos de responder a essa realidade", afirmou.

O Aukus havia sido revelado ao mundo em setembro de 2021, gerando enorme calor geopolítico. Primeiro, porque colocava a Austrália definitivamente no jogo da Guerra Fria 2.0. O acordo fez de Camberra um membro do seleto clube de seis nações com capacidade de operar a furtiva arma, que pode patrulhar com alcance ilimitado do ponto de vista de combustível todo o flanco sul das rotas marítimas que hoje sustentam a economia exportadora de Pequim.

A chamada liberdade de navegação, vista em Pequim como oportunidade de estrangulamento em caso de conflito, é central no discurso americano para o Indo-Pacífico. A Austrália já é parte do Quad, outra iniciativa anabolizada por Biden para enfrentar a China, uma parceria política e econômica que inclui Índia e Japão, também com vários componentes militares.

Além disso, o acordo secreto irritou os franceses, que tiveram desfeito o contrato de US$ 66 bilhões (R$ 346 bilhões) para fornecer submarinos de propulsão convencional para Camberra. Mas essa rusga acabou superada, não menos pela unidade ocidental ante a Guerra da Ucrânia.

No ano passado, cada submarino da classe Virginia custava US$ 3,45 bilhões (R$ 18 bilhões) para ser produzido. Analistas navais levantam diversas dúvidas acerca da capacidade de Washington de cumprir seus compromissos: das 66 unidades encomendadas, 21 foram entregues em 23 anos, com duas novas previstas para este 2023.

Há especulações de que os EUA poderão vender embarcações de segunda mão, enquanto constroem novas para si, mas isso já foi objeto de debate no Congresso americano, com a oposição republicana criticando o que seria o enfraquecimento de sua frota.

O Aukus prevê que, a partir da próxima década, o Reino Unido irá construir para a Austrália e para si um número incerto de uma nova classe de submarinos nucleares, uma evolução do Virginia com alegada participação de todos os aliados no projeto.

Já em 2027, submarinos nucleares americanos e britânicos, com armas convencionais, irão operar a partir do porto australiano de Perth, onde já há um modelo Virginia para iniciar o treinamento dos aliados. A Marinha dos EUA quer transformar o local em uma grande garagem de manutenção para sua frota. Isso deverá gerar ainda mais reações negativas por parte da China.

A última vez que os EUA elevaram um aliado a tal nível de parceria foi justamente com os britânicos em 1958, quando foi acertada a venda de um sistema de propulsão nuclear para submarinos que capacitou Londres a fabricar os seus próprios modelos, além de combustível para dez anos de operação.

Hoje, o Reino Unido opera dez submarinos de propulsão nuclear, quatro deles modelos lançadores de mísseis balísticos com ogivas atômicas. Os EUA reinam no campo, com 67 embarcações com reatores nucleares, 14 delas para emprego dessas armas de destruição em massa.

A Austrália só dispõe de seis modelos de ataque mais antigos, com propulsão diesel-elétrica. Já a rival de todos, a China, tem uma frota ampla, com seis modelos estratégicos para uso de armas atômicas e outros seis de ataque com propulsão nuclear, além de 47 outras embarcações diesel-elétricas, uma delas habilitada a lançar mísseis balísticos.

"Essa parceria foi fundada em base de valores compartilhados e no foco resoluto em manter a estabilidade no Indo-Pacífico", afirmou Sunak em comunicado. Os australianos deverão bancar cerca de 15% dos custos multibilionários, com o resto dividido entre os aliados.

Os chineses já se queixaram publicamente da militarização em seu quintal estratégico —Pequim, aliás, considera o vital mar do Sul da China 85% seu, e instalou bases em ilhotas e recifes em toda a região a partir de 2014.

Uma via para tentar obstruir o Aukus é a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), onde a China protesta contra o que chama de proliferação nuclear indevida. Com efeito, o órgão da ONU estuda a proposta do pacto para controlar o combustível nuclear a bordo dos submarinos.

Teoricamente, nenhum deles empregará armas atômicas, como Biden ressaltou em seu discurso, no qual disse que a AIEA irá acompanhar todo o processo.

"Cada fase [do Aukus] irá estabelecer o maior padrão de não proliferação nuclear", disse o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin. Como a AIEA irá decidir afeta inclusive o Brasil, que tem um pedido de análise semelhante para o combustível a ser usado no seu submarino nuclear, que nas contas mais otimistas estará pronto em algum momento no fim dos anos 2030.

Se a Guerra da Ucrânia mexeu com toda a realidade de defesa global, é o embate entre China —aliada da Rússia— e os EUA que permeia a arquitetura dos gastos militares. O Reino Unido, por exemplo, anunciou que gastará o equivalente a US$ 6 bilhões (R$ 31,5 bilhões) a mais em dois anos com projetos no setor.

Em 2022, Londres registrou o quarto maior gasto militar do mundo (US$ 70 bilhões, ou R$ 367 bi), e a Austrália ficou em 12º (US$ 33,8 bilhões, ou R$ 177,5 bi). Os chineses ficaram em segundo lugar, com US$ 242,4 bilhões (R$ 1,73 trilhão), todos sob a sombra da enormidade despendida por Washington: US$ 766,6 bilhões (R$ 4 tri) —a cada 11 dias, o equivalente ao valor gasto pelo Brasil na área durante todo o ano.

E vem mais por aí. Na semana passada Biden enviou ao Congresso a proposta do maior orçamento de defesa da história em tempos de paz: US$ 842 bilhões (R$ 4,4 trilhões), mais US$ 44 bilhões (R$ 231 bilhões) em projetos relacionados ao setor em outras áreas do governo.

Nesta segunda, o Departamento de Defesa detalhou os gastos, destacando com todas as letras a prioridade em fazer frente ao que considera ameaça chinesa. Além de programas diversos, como US$ 11 bilhões (R$ 58 bi) para mísseis hipersônicos, os EUA pedem um aumento de 5,2% em salários de militares.

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