Investigação revela roubos e mentiras de voluntários dos EUA na Ucrânia

Alguns se passavam por ex-militares, e outros desviavam verbas após ir ao país europeu dizendo ajudar na guerra

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Justin Scheck Thomas Gibbons Neff
Kiev | The New York Times

Eles voaram para a Ucrânia aos milhares. Muitos são americanos que prometeram levar experiência militar, dinheiro ou suprimentos para lutar. Jornais de suas cidades saudaram seu compromisso, e doadores os apoiaram com milhões de dólares.

Após um ano de combate, muitos desses grupos de voluntários estão brigando entre si e minando o esforço de guerra. Alguns desperdiçaram dinheiro ou mesmo roubaram. Outros se passaram por agentes de caridade enquanto tentavam lucrar com a guerra.

Axel Vilhelmsen treinou soldados ucranianos como parte do Grupo Mozart, que dois ex-fuzileiros navais formaram para ajudar a Ucrânia - Laura Boushnak - 23.jul.22/The New York Times

Um tenente-coronel aposentado da Marinha na Virgínia é o foco de uma investigação do governo dos EUA sobre possível exportação ilegal de tecnologia militar. Um ex-soldado do Exército chegou à Ucrânia, tornou-se traidor e desertou para a Rússia.

Um homem de Connecticut que mentiu sobre sua experiência militar postou atualizações ao vivo do campo de batalha, incluindo sua localização exata, e se gabou de seu fácil acesso a armamentos. Um ex-trabalhador da construção civil está tramando um plano para contrabandear combatentes do Paquistão e do Irã.

E, num dos casos mais curiosos, um dos maiores grupos de voluntários está envolvido numa luta de poder envolvendo um homem de Ohio que mentiu dizendo que foi fuzileiro naval dos EUA. A disputa envolve um antigo incidente num reality show da Austrália.

Esses personagens têm um lugar na Ucrânia devido à posição que os EUA assumiram: o governo Biden envia armas e dinheiro, mas não soldados profissionais. Isso significa que pessoas que não deveriam chegar nem perto do campo de batalha numa guerra liderada pelos EUA estão atuando na frente ucraniana, muitas vezes com acesso a armas e equipamentos militares.

Muitos dos voluntários que correram para a Ucrânia o fizeram por altruísmo, agindo como heróis. Alguns perderam a vida. Estrangeiros resgataram civis, ajudaram os feridos e lutaram ao lado dos ucranianos. Outros levantaram dinheiro para suprimentos cruciais.

Mas na maior guerra terrestre da Europa desde 1945 a abordagem "faça você mesmo" não diferencia entre voluntários treinados e aqueles que carecem de habilidades ou disciplina para ajudar de forma eficaz.

O New York Times analisou mais de cem páginas de documentos de grupos de voluntários e entrevistou mais de 30 pessoas envolvidas. Alguns falaram sob a condição de anonimato.

As entrevistas e pesquisas revelam uma série de enganos, erros e disputas que atrapalharam a campanha voluntária que começou após a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022, quando o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, pediu ajuda. "Todo amigo da Ucrânia que quiser se juntar à Ucrânia para defender o país, por favor, venha", disse ele. "Nós lhe daremos armas."

Milhares responderam ao chamado. Alguns se juntaram a grupos militares como a Legião Internacional, que a Ucrânia formou para combatentes estrangeiros. Outros assumiram funções de apoio ou captação de recursos. Com a capital Kiev sob ataque, havia pouco tempo para selecionar os que chegavam.

Assim, pessoas com passado problemático, incluindo algumas com registros militares duvidosos ou forjados, entraram na Legião e em diversos outros grupos de voluntários.

Membros de uma unidade de combate que inclui EUA, Reino Unido, Canadá e Austrália, em Bakhmut, Ucrânia - Tyler Hicks - 11.dez.22 /The New York Times

Questionados sobre esses problemas, militares ucranianos disseram estar em alerta porque agentes russos tentavam regularmente se infiltrar em grupos de voluntários. "Investigamos os casos e os entregamos às agências policiais", disse Andri Tcherniak, da inteligência militar.

Um dos americanos mais conhecidos no campo de batalha é James Vasquez. Dias após a invasão, Vasquez, um empreiteiro de Connecticut, anunciou que estava indo para a Ucrânia. O jornal de sua cidade contou a história de um ex-sargento do Exército que deixou seu trabalho e a família e pegou um rifle e uma mochila rumo à linha de frente.

Desde então, ele compartilhou vídeos do campo de batalha e, pelo menos uma vez, transmitiu a localização precisa de sua unidade para todos nas redes sociais , incluindo o inimigo.

Ele usou sua história para solicitar doações. "Eu estive no Kuwait durante a operação Tempestade no Deserto e no Iraque depois do 11 de setembro", disse num vídeo. "Este é um negócio totalmente diferente."

Vasquez nunca foi destacado para o Kuwait, Iraque ou qualquer outro lugar, segundo um porta-voz do Pentágono. Ele era especialista em reparos elétricos e deixou a reserva do Exército não como sargento, mas como soldado de primeira classe, um dos postos mais baixos.

Ainda assim, Vasquez tinha fácil acesso a armas, incluindo fuzis americanos. De onde eles vieram? "Não tenho certeza", disse ele. Os rifles, acrescentou, eram "novos em folha, e temos muitos". Ele também tuitou que não devia se preocupar com as regras internacionais de guerra enquanto estivesse na Ucrânia.

Ele lutou ao lado dos "Da Vinci’s Wolves", um batalhão de extrema direita ucraniano, até esta semana, quando o Times perguntou sobre suas falsas alegações de serviço militar. Ele então desativou sua conta no Twitter e disse que iria deixar a Ucrânia porque autoridades descobriram que ele não tinha histórico militar.

Vasquez disse que vinha falsificando seu histórico militar há décadas. Ele reconheceu ter sido expulso do Exército, mas não quis falar sobre o motivo. "Tive que contar um milhão de mentiras para seguir em frente. Eu não percebi que ia dar nisto."

A Legião Internacional, formada às pressas pelo governo ucraniano, passou dez minutos ou menos verificando o histórico de cada voluntário no início da guerra, disse um oficial. Assim, um fugitivo polonês que tinha sido preso na Ucrânia por infrações com armas conseguiu uma posição de líder das tropas. Soldados disseram ao jornal The Kyiv Independent que ele desviou suprimentos, assediou mulheres e ameaçou seus soldados.

Autoridades ucranianas inicialmente se gabaram dos 20 mil potenciais voluntários na Legião. Há, porém, cerca de 1.500 membros na organização, segundo pessoas envolvidas com o grupo. Alguns são combatentes experientes que trabalham na inteligência da Ucrânia.

Mas há problemas de alto nível. Um ex-soldado do Exército, John McIntyre, foi expulso por mau comportamento e desertou para a Rússia.

Documentos internos mostram que a Legião está em dificuldades. O recrutamento estagnou. O Counter Extremism Project, com sede em Washington, escreveu em março que a Legião e grupos afiliados "continuam contando com indivíduos considerados inaptos".

Malcolm Nance, ex-membro da Marinha e comentarista da rede americana MSNBC, chegou à Ucrânia no ano passado e fez um plano para levar ordem à Legião. Em vez disso, envolveu-se no caos.

Ele acusou de fraude um grupo de arrecadação de fundos pró-Ucrânia, sem fornecer provas. Depois de discutir com dois líderes da Legião, escreveu um relatório tentando levar à demissão deles.

No centro desse relatório está a acusação de que uma oficial da Legião, Emese Abigail Faik, tentou de forma fraudulenta comprar uma casa num reality show da Austrália com dinheiro que ela não tinha. Ele a rotulou de "uma potencial espiã russa", sem dar provas. Faik negou as acusações e permanece na Legião.

Nance disse que, como membro da Legião com experiência em inteligência, quando teve preocupações, "sentiu a obrigação de relatá-las à contraespionagem ucraniana".

Com o crescimento da Legião estagnado, Ryan Routh, um ex-trabalhador da construção civil na Carolina do Norte, está procurando recrutas entre os soldados afegãos que fugiram do Talibã. Routh disse que planeja transferi-los do Paquistão e do Irã para a Ucrânia. Segundo ele, dezenas manifestaram interesse.

"Provavelmente podemos comprar alguns passaportes pelo Paquistão, já que é um país tão corrupto", disse. Não está claro se ele conseguiu, mas um ex-soldado afegão afirma ter sido contratado.

Na primavera passada, um grupo de voluntários chamado Ripley's Heroes disse que gastou cerca de US$ 63 mil em equipamentos de visão noturna e óptica térmica. Parte deles estava sujeita a restrições de exportação americanas porque, nas mãos erradas, poderia dar vantagem aos inimigos.

Voluntários na linha de frente disseram que a Ripley's entregou o equipamento à Ucrânia sem a documentação necessária que lista os compradores e destinatários. Funcionários federais começaram a investigar os carregamentos, disseram autoridades dos EUA.

Em sua defesa, o fundador do grupo, um fuzileiro naval aposentado chamado tenente-coronel Hunter Ripley Rawlings IV, forneceu documentos do acordo ao Times. Mas esses registros mostram que, assim como disseram os voluntários, a Ripley's não foi divulgada ao Departamento de Estado como compradora.

A Ripley's diz que arrecadou mais de US$ 1 milhão (R$ 5 milhões), parte deles graças ao ex-empreiteiro de Connecticut, Vasquez, que alegou ser o diretor de estratégia do grupo e promoveu a Ripley's na internet.

A Ripley's gastou cerca de US$ 25 mil (R$ 132 mil) em carros de reconhecimento por controle remoto no ano passado, mas eles nunca chegaram. Rawlings disse que as autoridades polonesas os retiveram.

Segundo ele, seu grupo está aguardando o estatuto de organização sem fins lucrativos nos EUA. Mas ele não revelou seus gastos ou uma possível solicitação para ser organização sem fins lucrativos. Assim, não está claro para onde está indo o dinheiro.

"Eu acreditei nesses caras", disse Shaun Stants, que afirmou ter organizado uma arrecadação de fundos em outubro em Pittsburgh, mas nunca viu os registros financeiros. "Fizeram-me de bobo."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.