Mundo vive onda recorde de autocratização, diz relatório

Instituto V-Dem afirma que, pela primeira vez em 20 anos, há mais ditaduras do que democracias plenas

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São Paulo

Se há duas décadas o mundo vive o que parte dos acadêmicos chama de terceira onda de autocratização, o cenário pode ter chegado ao seu pior estágio já registrado: há um número recorde de países se autocratizando, aponta relatório do instituto V-Dem lançado nesta quinta-feira (2).

O material, publicado anualmente e considerado uma das referências globais em classificação de regimes políticos, afirma que 42 países estavam nesse processo no final de 2022 —no ano anterior, eram 33.

O presidente do Irã, Ebrahim Raisi, discursa em Teerã; país foi um dos que passou a ser considerado uma ditadura no novo relatório do V-Dem
O presidente do Irã, Ebrahim Raisi, discursa em Teerã; país foi um dos que passou a ser considerado uma ditadura no novo relatório do V-Dem - Majid Asgaripour - 4.nov.22/Wana via Reuters

O Brasil integra essa lista, ao lado de nações como Polônia, El Salvador e Índia, mas o material do instituto sueco afirma que há uma janela de oportunidade após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para que o Estado reverta esse panorama e escape da designação.

Estar em processo de autocratização significa que uma nação está erodindo pilares cruciais de uma democracia, como alternância de poder, liberdades de expressão e de imprensa e pleitos competitivos.

A designação se refere tanto a democracias, como o Brasil, que rumam para regime autocráticos, quanto a autocracias eleitorais, que possuem eleições multipartidárias, mas estão aquém em relação a outros pilares democráticos —e, assim, caminham para uma ditadura. Trata-se do caso da Índia.

O alerta de preocupação se intensifica, uma vez que muitos dos países que estão guinando para autocracias têm grandes populações: juntos, eles abrigam 43% da população global. Em 1999, mostra o relatório, apenas 3% viviam em países que estavam passando por processos de autoritarismo.

Mais do que isso, muitos dos autocratizadores globais são países com capacidade de influência regional e mesmo global, como a Rússia, com tentáculos importantes nas ex-repúblicas soviéticas ao seu redor.

Segundo o V-Dem, que usa mais de 500 índices e 4.000 avaliadores de todo o mundo para classificar os regimes políticos, o nível de democracia regrediu ao que era observado em 1986. Mais grave é a situação na região da Ásia e do Pacífico, que retrocedeu a níveis de 1978.

O relatório calcula que, pela primeira vez em 20 anos, o número de ditaduras é maior que o de democracias liberais —aquelas que, além de eleições multipartidárias e garantias institucionais, têm supervisão efetiva do Executivo por parte do Legislativo e do Judiciário.

A diferença é pequena em cifras totais: são 32 democracias liberais —ante 44 há cerca de dez anos— e 33 ditaduras —ante 22. O desnível mais acentuado está no contingente populacional que agregam: democracias plenas, como Noruega e Espanha, têm em geral menos habitantes; elas reúnem 13% da população global. Já as ditaduras abraçam a fatia de 28%.

O Irã é uma das "novas ditaduras". Antes considerado autocracia eleitoral, o país migrou em 2022 para a lista das ditaduras fechadas após a repressão do regime teocrático aos protestos que sucederam a morte da jovem curda Mahsa Amini, detida por supostamente não usar o véu islâmico de maneira correta.

O relatório também ressalta os mecanismos usados por líderes avessos à democracia para corroer o sistema. Um deles, talvez o principal, é o cerceamento da liberdade de imprensa. O direito está se deteriorando em 35 países, de acordo com o V-Dem. Há dez anos, eram sete.

O debate sobre o refluxo das democracias tem crescido ao longo dos últimos anos, em especial após a eleição de Donald Trump nos EUA e, em 2021, a invasão do Capitólio, a sede do Legislativo americano, insuflada pelo republicano. Mas também há dissonância na comunidade acadêmica.

Pesquisa recente sugeriu que o cálculo dos indicadores de regimes políticos tem sido influenciado pela subjetividade dos pesquisadores, que estariam, em sua maioria, desanimados com o lento avançar da democracia em algumas regiões. Segundo o V-Dem, no entanto, seu modelo de medição já inclui tecnologias para levar em conta que, por vezes, um ou outro pesquisador pode fornecer avaliações tendenciosas, de modo a amortizar a subjetividade dos acadêmicos.


AS DESIGNAÇÕES DE REGIMES POLÍTICOS

  • Ditaduras Não há eleições para Executivo e Legislativo ou elas se dão sem competição efetiva, como em regimes de partido único;
  • Autocracias eleitorais Possuem eleições multipartidárias, mas estão aquém de outros pilares democráticos por irregularidades em garantias institucionais, como liberdade de expressão;
  • Democracias eleitorais Possuem eleições multipartidárias para a chefia do Executivo e garantias institucionais —é o caso do Brasil;
  • Democracias liberais Além de eleições multipartidárias e garantias institucionais, têm supervisão efetiva do Executivo por parte do Legislativo e do Judiciário e vigilância e proteção real das liberdades civis e do Estado de Direito.
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