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Podcast discute papel de águas fluviais em contexto de guerras e crise climática

Com rios e lagos, é preciso desencadear negociações para evitar que divergências deixem países de mãos vazias

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São Paulo

Vejamos dois exemplos sobre o uso internacional das águas fluviais. No noroeste da África, o rio Senegal é dividido fraternalmente entre Mauritânia, Senegal, Guiné e Mali. São países bem díspares que até entram em guerra por política. Mas não pela água, bem arbitrada por uma entidade regional.

Do outro lado da África, a Etiópia começou há 12 anos a construir uma barragem no rio Nilo. O Egito e o Sudão puseram o punhal entre os dentes. Até o Conselho de Segurança da ONU entrou como árbitro. Mas não há no horizonte a divisão pacífica das águas do rio.

do alto, um homem negro observa a imensa construção de uma barragem no rio nilo, que está ao centro. a fotografia foi tirada ao entardecer, por isso é possível ver uma luz de pôr-do-sol nas serras ao fundo
Operador de rádio observa a construção da Grande Represa do Renascimento da Etiópia, no rio Nilo - Eduardo Soteras - 20.jul.2020/AFP

Esses são dois dos casos tratados neste mês em conferência da ONU, em Nova York, sobre águas doces. E foram também tema de podcast com quatro especialistas reunidos em Paris pela emissora pública France Culture.

Os rios passaram a ter um novo estatuto com as mudanças climáticas. Tendem a armazenar uma água mais rara e mais poluída para irrigar territórios com maior densidade demográfica. "O arsênico usado nos agrotóxicos está contaminando os lençóis freáticos em muitos pontos do planeta", diz Christophe Jeffrelot, chefe de um centro de pesquisas franco-alemão.

E há também a maldição da guerra, diz Marie-Laure Vercambre, coordenadora de ONGs francesas de usuários de bacias hidrográficas. Ela acusa a Rússia de estar destruindo com mísseis as estações de tratamento de água na Ucrânia, o que é um crime previsto pela Convenção de Genebra de 1949.

Esse conjunto de exemplos já demonstra que os rios não são mais locais piscosos e bucólicos. São também um instrumento de dominação para os chamados "povos hidrodominantes", como a Turquia. Ela vem reduzindo em no mínimo 30% o curso das águas do Eufrates, antes que elas entrem no território da Síria, diz o escritor Erik Orsenna. O regime turco usa a água como instrumento de pressão contra a ditadura vizinha, envolvida em interminável guerra civil.

Tais abusos poderiam ser arbitrados por uma espécie de ombudsman das águas doces, cargo que a União Europeia e os EUA querem instituir na estrutura da ONU. Foi um tema em pauta na conferência. Mas tem gente contra. Como a China, que rejeita qualquer controle bilateral sobre os rios que penetram em seu território a partir do planalto tibetano. Ou a Índia, que construiu uma barragem no Ganges pertinho da fronteira com Bangladesh, afetando a irrigação em terras do vizinho. Até o Brasil era contra e não assinou petição pela oficialização desse árbitro. "Mas foi quando Bolsonaro ainda era o presidente", ressalva Vercambre.

Orsenna cita um bom exemplo de ação possível de um ombudsman. Existe na Guiné uma cadeia de montanhas na qual nascem rios que irrigam regiões com 300 milhões de africanos. Pois a energia desses rios está nas florestas, que ficaram cada vez mais raras. Sem negociar o reflorestamento, um bom pedaço de África poderá passar sede dentro de 30 anos.

Os participantes do podcast pouco disseram da Ásia e nada da América Latina, onde tais problemas se repetem. Foi talvez por uma ligação privilegiada com ex-territórios coloniais, que também estão inscritos no complexo político de culpa dos europeus.

O fato é que problemas não faltam, diz Franck Galland, um dos grandes especialistas em problemas hídricos. Ele discorre sobre o conflito da Etiópia com seus vizinhos. Com a barragem, ela terá 60 bilhões de metros cúbicos de água. E bem na surdina, na semana em que a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, ligou a primeira das 13 turbinas projetadas.

O Egito precisa alimentar uma população que chegou recentemente a 101 milhões de habitantes. No Sudão, a lógica é a mesma. Mas se desencadear uma guerra contra os etíopes, quem estará por trás deles será a China, potência que aos poucos substitui a Rússia e os EUA como grande parceiro da África. A água virou do avesso a geopolítica regional e fará da Etiópia um exportador de eletricidade.

A última vez que a comunidade internacional discutiu seriamente a água doce foi numa conferência de 1977, lembra Galland. Desde então, foram gastos 15 anos para se chegar a um tratado sobre as águas salgadas do mar. Com os rios e lagos, é preciso desencadear negociações já agora para evitar que divergências deixem os países de mãos vazias com a nova realidade do clima.

Uma realidade que chega aos poucos com duas caras: a seca, ou as inundações provocadas por chuvas cada vez mais raras e mais intensas. Que o diga Bangladesh, cujas províncias mais ao sul ficaram com água até a cintura a partir de junho do ano passado. Mais ou menos como no município paulista de São Sebastião, com desabamentos e muitas mortes.

Les Guerres de L'eau

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