Inverno quente na Europa lega desafios à agricultura e abre alerta sobre o verão

Campo e cidade sentem impactos da seca e do aumento das temperaturas em meio a agravamento da crise do clima

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Milão

O inverno acabou nesta semana na Europa, mas deixou marcas negativas que já afetam a primavera. A combinação de temperaturas altas com escassez de chuvas e neve deixou como rastro um quadro de seca, que coloca em risco plantações e acende o alerta para o que pode ocorrer no verão. No ano passado, o continente teve o verão mais quente da história, com 20 mil mortes associadas às ondas de calor.

Com 1,4°C acima da média do período de referência (1991-2020), esse foi o segundo inverno mais quente da Europa –somente abaixo do que terminou em 2020, 2,8°C mais quente. Em dezembro, a porção central do continente teve picos entre 3°C e 6°C acima das médias.

Duas pessoas caminham em área seca do lago Montbel, na França
Duas pessoas caminham em área seca do lago Montbel, na França - Valentine Chapuis - 21.fev.23/AFP

Foi também uma temporada de pouca chuva e neve, quase ausente abaixo de 2.000 metros. Mesmo nas montanhas mais altas, o acumulado ficou em níveis baixos, como mostraram algumas estações de esqui dos Alpes, que recorrem cada vez mais à neve artificial. Assim, os rios terão pouca contribuição do gelo que é derretido na primavera.

A situação é preocupante especialmente na parte ocidental e sul do continente, com secas já presentes em áreas de França, Espanha e Itália, mas afeta também Reino Unido, Romênia, Bulgária, Turquia e o norte africano, segundo relatório do Observatório Global da Seca, da Comissão Europeia, divulgado em meados deste mês.

Se por um lado o inverno ameno, com a menor necessidade de aquecimento dos ambientes fechados, ajudou governos europeus a driblarem riscos no fornecimento de gás, diante dos altos preços e da menor disponibilidade do produto russo –consequências da Guerra da Ucrânia–, por outro, anuncia dificuldades.

No norte da Itália, os rios terminaram o inverno com fluxo de água entre 30% e 70% menor, e o lago de Como apresenta enchimento de apenas 22%. No rio Pó, o maior do país e importante para agricultura, indústria e consumo residencial, em certos pontos o nível da água caiu mais de 3 metros, índice outrora registrado no verão.

Segundo a Coldiretti, a associação italiana de agricultores, a plantação do arroz, cuja semeadura ocorre na primavera, está prejudicada, obrigando cultivadores a mudarem para soja e trigo. Estima-se um corte de 8.000 hectares no cultivo do arroz, a menor área em 30 anos. O governo anunciou um gabinete de crise para lidar com a seca.

Na França, onde o mês de fevereiro foi o mais seco em mais de 60 anos, os reservatórios de água potável estão 55% cheios, percentual que era de 85% na mesma época de 2022. O governo também monitora, e, no começo de março, quatro áreas do país enfrentavam restrições de consumo, com proibição de encher piscinas e irrigar gramados.

Na Espanha, a Catalunha, onde fica Barcelona, enfrenta 25 meses sem chuvas significativas, e as autoridades estipularam cortes no consumo de água que vão de 8% para as casas até 40% para a agricultura. Em Sau, a torre de uma igreja virou atração após emergir com a seca de um reservatório.

Turistas caminham perto de torre de igreja que emergiu em Sau, na Espanha, após queda do nível da água em um reservatório
Turistas caminham perto de torre de igreja que emergiu em Sau, na Espanha, após queda do nível da água em um reservatório - Nacho Doce - 15.mar.23/Reuters

"Chegamos à primavera com uma situação muito crítica em algumas regiões europeias", diz à Folha Andrea Toreti, coordenador do Observatório Global da Seca. Coautor do relatório, o especialista explica que o problema se agravou devido à repetição de eventos negativos nos últimos cinco anos.

"Acumulamos um déficit hídrico importante, que não foi recoberto, e de novo tivemos um inverno seco. Em algumas partes da Europa, estamos assistindo a uma recorrência de eventos assim com frequência sempre maior", afirma. "Algo claramente em linha com o que as projeções climáticas nos mostram para as próximas décadas."

A seca tem ainda agravado outro problema na Espanha: a temporada de incêndios florestais. Nos últimos dias, o fogo destruiu 4.000 hectares de floresta e forçou 1.700 moradores a deixarem suas casas. As chamas continuam, e as condições climáticas dificultam seu controle.

Segundo o relatório, as previsões que vão até maio alertam para uma primavera mais quente que a média, enquanto há incerteza em relação às chuvas. Se não chover nas próximas semanas, outras ameaças se anunciam, com danos para colheita do trigo, produção de energia hidroelétrica e para os próprios ecossistemas.

Previsões mais precisas para o verão dependem das próximas semanas. Em 2022, europeus tiveram temperatura média entre junho e agosto 1,3°C maior que o período de referência (1991-2020). Ou seja: o verão mais quente da história.

As ondas de calor, que quebraram recordes nos termômetros de vários países –o Reino Unido teve 40°C pela primeira vez–, causaram secas, incêndios e estão associadas a 20 mil mortes por razões como insolação e ataque cardíaco.

Chama a atenção o fato de que os dez verões mais quentes no continente tenham ocorrido todos a partir de 2003, com o segundo e o terceiro mais intensos registrados, respectivamente, em 2021 e 2018. "O que podemos certamente dizer agora é que os modelos indicam a tendência de um verão mais quente que o normal", afirma Toreti.

O cientista ecoa conclusões do relatório do painel científico do clima da ONU (IPCC, na sigla em inglês), divulgado no último dia 20. Apesar de a seca na Europa ser um fenômeno cada vez mais frequente e requerer medidas de adaptação, ainda há espaço para mitigação.

"Temos que fazer os dois. Mitigar significa reduzir o nível global de emissão de gases do efeito estufa para conter o aquecimento dentro de limites aceitáveis. Mas devemos desenvolver estratégias para cada setor, para limitar impactos de eventos extremos como a seca."

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