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Ataque a tiros em Nashville escancara nível de polarização na cidade

Massacre que deixou 7 mortos expõe diferentes perspectivas sobre temas como acesso a armas e direitos LGBTQIA+

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Richard Fausset
The New York Times

Logo após o ataque a tiros que deixou seis pessoas mortas em uma escola em Nashville, no Tennessee, a senadora estadual Charlane Oliver, uma democrata em primeiro mandato que representa grande parte da cidade, levantou-se diante dos repórteres e enxugou as lágrimas. Em seguida, criticou seus colegas republicanos por afrouxarem sistematicamente as leis estaduais sobre armas quando, segundo ela, deveriam ter sido reforçadas.

"Eu acredito em carma", disse Oliver. "E chegará o dia em que todas as pessoas que não fizeram nada, que Deus as ajude."

a foto mostra um grupo de manifestantes dentro de um recinto público erguendo cartazes contra o porte de armas
Manifestantes se reúnem dentro do Capitólio do estado do Tennessee para pedir o fim da violência armada e apoiar leis de controle mais rígidas - Seth Herald - 30.mar.23/Getty Images via AFP

Nashville, a pujante capital do Tennessee, normalmente trouxe certa polidez à gestão de suas tensões –entre "rural e urbano, elites polidas e pessoas comuns rudes, um passado voltado para trás e um olhar voltado para o futuro", como colocou o historiador Benjamin Houston.

Em meados do século 20, os líderes da cidade e ativistas dos direitos civis negociaram uma integração amplamente pacífica de seus espaços públicos. Mais recentemente, os habitantes locais se orgulharam do conceito de "Nashville simpática". E, durante décadas, liberais e conservadores se misturaram num estado de relativa cortesia, criando uma cidade que pode parecer "radicalmente desordenada", como escreveu certa vez o crítico Stephen Metcalf em relação à política de Johnny Cash, um dos muitos heróis musicais de Nashville.

Mesmo antes do horrível ataque a tiros desta semana, porém, essa sensação de acomodação respeitosa estava se tornando cada vez mais difícil de manter. E alguns em Nashville dizem que pode se tornar exponencialmente mais difícil após o massacre de segunda-feira (27), que tocou em dois tópicos polarizadores: a política de armas cada vez mais aberta do Tennessee e os atritos sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+, que foram exacerbados por novas leis republicanas que visam shows de drag queens e proíbem tratamentos para retardar a puberdade de crianças transgênero.

Centenas de manifestantes, incluindo adolescentes, crianças em seus uniformes escolares e mães com bebês no colo, inundaram o Capitólio do estado na quinta-feira (30), entoando frases como "votem contra eles" e "não queremos seus pensamentos e orações". Do lado de dentro, um impasse se criou quando alguns legisladores democratas interromperam os procedimentos usuais para se juntar aos manifestantes e pedir leis mais rígidas sobre armas.

A pessoa responsável pelo ataque, identificada pela polícia como Audrey Hale, 28, era ex-estudante da Covenant School, uma escola cristã. Hale usou três armas que, segundo a polícia, foram compradas legalmente, incluindo um rifle semiautomático de estilo militar.

Houve confusão sobre a identidade de gênero da atiradora. O delegado John Drake, do Departamento de Polícia Metropolitana de Nashville, disse que Hale era uma pessoa transgênero, e as autoridades usaram pronomes femininos como referência. Mas em uma postagem na rede social e em um perfil do LinkedIn, Hale se identificava como homem.

Nos círculos liberais, a raiva explodiu quase imediatamente. "Posso perguntar a você, governador Bill Lee, por que aprovou porte sem permissão em 2021?", escreveu Margo Price, estrela da música country de Nashville, no Twitter, referindo-se à lei assinada pelo líder republicano do Tennessee. O projeto em questão permite que a maioria dos adultos carregue armas mesmo sem autorização oficial. "Nossas crianças estão morrendo e sendo baleadas na escola, mas você está mais preocupado com drag queens do que com leis de armas? Você tem sangue em suas mãos."

A revolta foi igualmente intensa por parte de alguns conservadores de Nashville, que tentaram conectar o ataque à identidade de gênero de Hale. Na terça (28), Clay Travis, apresentador de rádio, escreveu em um tuíte: "Este foi um ataque terrorista a pessoas religiosas por uma pessoa trans lunática enlouquecida".

Uma linguagem mais dura foi usada por Matt Walsh, podcaster de direita que organizou uma manifestação contra o tratamento médico para jovens transgênero no centro de Nashville em outubro passado. Nesta semana, ele dedicou um de seus programas ao ataque à Covenant School.

"Não se trata de armas, e esses malditos mentirosos sabem muito bem que não se trata de armas", disse Walsh. Ele passou a descrever o "ativismo trans radical de extrema esquerda" como um "movimento odioso e violento".

Acabou a "Nashville simpática". Durante anos, a cidade foi administrada por uma série de prefeitos que estabeleceram um tom moderado para a localidade no sul ansiosa para superar seu passado: em geral, os prefeitos foram socialmente progressistas. Nos últimos anos, porém, o Conselho Metropolitano de Nashville tornou-se ainda mais progressista, refletindo uma população mais liberal: de 2015 a 2022, a porcentagem de moradores que se consideravam liberais aumentou de 24% para 30%, de acordo com uma pesquisa da Universidade Vanderbilt.

John Geer, professor de ciências políticas na instituição, disse que a mudança provavelmente está relacionada ao rápido crescimento populacional da cidade, quase o dobro da média dos EUA, e ao fenômeno "big sort", no qual os americanos procuram cada vez mais viver entre pessoas de convicções políticas semelhantes às suas.

À medida que a cidade se inclinou para a esquerda, porém, republicanos do Tennessee, em ascensão na política estadual, deram uma guinada à direita. Confrontos entre a cidade e o Legislativo são, até certo ponto, conflitos entre valores urbanos e rurais, uma vez que muitos legisladores republicanos representam a região rural conservadora do estado. Na capital, onde os políticos se deparam com as figuras da indústria da música e os muitos recém-chegados que procuram a emergente indústria de tecnologia de Nashville, a tensão também pode parecer íntima e pessoal.

A tensão partidária se espalhou além do prédio do Capitólio. Em outubro, o Centro Médico da Universidade Vanderbilt anunciou que estava suspendendo o que os médicos chamam de procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero para pacientes com menos de 18 anos, depois que o centro foi pressionado por conservadores dentro e fora do Legislativo.

"Acho que é uma luta pela alma de Nashville", disse Lisa Quigley, estrategista política que já serviu como chefe de gabinete do ex-deputado democrata Jim Cooper.

Antes do ataque a tiros, armas e questões sociais não eram as únicas razões pelas quais os democratas e republicanos de Nashville estavam furiosos uns com os outros. No ano passado, republicanos redesenharam o mapa do Congresso do Tennessee para que um distrito da capital controlado por democratas durante quase 150 anos fosse dividido em três distritos que se estendem até subúrbios conservadores e áreas rurais, de modo a favorecer fortemente os republicanos.

Também houve outros momentos em que as conexões se desgastaram devido às divisões políticas. Anna Caudill, uma defensora da educação especial em Nashville, trabalhou de 2000 a 2008 numa escola chamada Christ Presbyterian Academy, onde fez amizade com uma das vítimas do ataque de segunda-feira, Katherine Koonce. Ela também conheceu as famílias do governador Lee e da senadora de direita Marsha Blackburn, ambas as quais enviaram seus filhos à escola presbiteriana.

Caudill disse que mantinha relações amigáveis com as duas famílias, no espírito de Nashville que ela conheceu quando se mudou para a cidade no final dos anos 1990. Mas disse que ficou abalada quando viu Blackburn participar da manifestação de Walsh em outubro, especialmente quando membros da milícia de extrema direita Proud Boys apareceram como apoiadores.

Alguns moradores de Nashville acreditam que a velha familiaridade entre esquerda e direita na cidade sobreviverá à tragédia. "Acho que há tensões maiores do que antes", diz Byron Trauger, advogado e líder cívico de Nashville. "Mas ontem de manhã eu estava numa reunião com algumas pessoas muito conservadoras, e elas me veem como moderado a liberal. E certamente não havia tensão ali. Acho que algumas das pessoas que vieram adorariam nos ver divididos, mas a força da cidade sempre foi que nos concentramos em melhorar as coisas, em oposição a algum quadro ideológico."

Em meio às tensões crescentes em Nashville, também houve inúmeros casos de pessoas se unindo para apoiar as famílias das vítimas e umas às outras. David Thomas, 52, diretor de aconselhamento familiar do de um projeto que presta assistência a crianças e famílias, conta que ficou emocionado quando uma gráfica local correu para produzir os materiais de que ele precisava para se reunir com as famílias afetadas pelo ataque. "Existe uma bondade que emerge de Nashville. Embora tenhamos crescido bastante, ainda há um ar de cidade pequena nessa cidade grande."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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