Descrição de chapéu LGBTQIA+

Quem são as Themônias, drag queens monstruosas que tomaram a cena artística

Artistas da região amazônica levam a estética do grotesco das festas de rua para a Bienal de São Paulo

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Drags montadas posam imitando a santa ceia

Cartaz da festa Noite Suja, em Belém, onde surgiu o grupo de drags Themônias Acervo Noite Suja

São Paulo

Gaby Amarantos cantou em "Xirley" os versos que a artista visual Rafael Bqueer diz refletirem seu próprio trabalho —"eu vou samplear, eu vou te roubar".

“A gente não tem o dinheiro que uma artista como Lady Gaga ou Rihanna têm, mas o tecnobrega pega a melodia delas e a transforma com uma letra em português, falando de outras questões”, afirma Bqueer. As obras da artista, que já expôs em museus dentro e fora do Brasil, se criaram, no entanto, em outro movimento que também bebe do tecnobrega e retoma criações artísticas do norte do país.

Trata-se das Themônias, um grupo de montação de Belém criado em 2014 que converte a estética das aparelhagens, o tecnobrega, os figurinos do Festival de Parintins e figuras ancestrais em drags monstruosas —e que agora passa a ter representantes dentro do circuito oficial de artes visuais.

A Noite Suja, festa idealizada por Maruzo Costa e Matheus Aguiar e berço das Themônias, surge com uma influência direta da ascensão de RuPaul’s Drag Race, a competição americana de drag queen já popular na época.

“Quando eles fazem essa convocação [da festa], todas as nossas amigas estavam um pouco nessa chama do programa da RuPaul, porque existe um movimento global do que é a arte da montação a partir do programa”, diz Bqueer, que grava agora um documentário sobre as Themônias para o Instituto Moreira Salles, a ser lançado no final deste ano.

“Mas quando vemos que a gente está no Pará, numa festa com o nome Noite Suja e buscando referências estranhas, todas chegam com uma estética que não é a padrão.”

O padrão, no caso, era o das drags luxuosas, com perucas estonteantes e looks glamourosos, próximos do que é considerado uma estética mais feminina. A cidade também vivia uma certa decadência dos espaços LGBTQIA+, e aqueles que ainda sobreviviam na época eram justamente as casas com esses grupos padrão, conta Juliano Bentes, também uma themônia e autor de uma dissertação de mestrado sobre o movimento.

As Themônias se voltaram, então, para as festas de rua para criar essa estética do grotesco —e se montaram com restos de garrafas de corote, bitucas de cigarro, vestidos imensos feitos de plástico, maquiagens com pigmentos comprados em casas de tempero e plantas locais, com uma “criatividade permeada por falta de recursos”, diz Bentes.

E começaram a surgir, na época, os nomes que se tornaram icônicos do evento, como Tristan Soledade, Flores Astrais e Gigi Híbrida.

É uma geração já crescida nos anos 1990 que também traz as referências futuristas dos Power Rangers e dos Megazords para debochar da moda e da beleza a partir da cultura paraense, segundo Rafael Bqueer, que também assina como Uhura Bqueer.

A artista também avalia que a referência amazônica das Themônias se espraia por outros estados e, hoje, é um movimento do Norte do Brasil. Um exemplo é Uýra Sodoma, de Manaus, “entidade” criada por Emerson Pontes e uma das artistas da próxima Bienal de São Paulo, que também se considera uma themônia.

“É possível demarcar uma origem do movimento e ampliar o seu alcance sobre outras habitações e corpos na Amazônia”, afirma a artista, que apresenta performances nas quais também se monta com plantas e acessórios que evocam pajelanças.

Hoje, Uýra e outras themônias também se afastam do termo drag queen para definir suas produções, já que, apesar de muito mais conhecido do que "themônia", ele vem carregado de um estrangeirismo que não dialoga com as montações no Pará, segundo elas.

O grupo se organiza em torno de famílias, uma estrutura registrada, por exemplo, no documentário “Paris Is Burning”, que mostra parte da cultura de ballroom em Nova York e as origens do vogue.

As cerca de 150 Themônias que atuam hoje, segundo Bqueer, vivem em famílias conhecidas como haus, em que artistas mais velhas orientam e convivem com as mais novas.

Além das competições de dublagens e da coroação de rainhas Themônias, as festas do Noite Suja mantêm cortejos de rua, com bloquinhos que saem com bateria e “bike som”, um pequeno paredão numa bicicleta. Há ainda o evento no Ita, em que elas se montam e ocupam o parque de diversões que vai para Belém todo ano na época do Círio de Narazé, uma das maiores celebrações religiosas do mundo.

Para o grupo, é uma espécie de afronta a religiosidade e tradição da cidade que carregam preconceitos. Mas parece ser também um diálogo com a cena de drags que Bentes resgata em sua dissertação —o pesquisador retraça uma origem de movimentos LGBTQIA+ em eventos como a Festa das Onze Mil Virgens, de estudantes de escolas religiosas.

“O Noite Suja consegue reunir artistas das escolas de samba, da moda, do figurino, do teatro, das artes visuais e uma pluralidade de linguagens artísticas e estéticas que eu não consigo ver em nenhum outro movimento. Principalmente porque eu trabalho com artes visuais, que é um nicho muito fechado”, afirma Bqueer.

A artista de 29 anos, que hoje mora em São Paulo, sentiu que faltava ao público do Sudeste referências do Norte do país quando apresentou “TecnoCabana”, trabalho virtual na plataforma do espaço de arte Pivô. A obra era uma aparelhagem virtual, inspirada justamente nas festas de tecnobrega nas periferias do Pará.

Foto escura, com luz negra, mostra pessoa com roupas e maquiagem neon, verdes e rosas, no centro
Obra de Rafael Bqueer apresentada no Pivô Satélite, projeto feito durante a pandemia de coronavírus com arte virtual - Divulgação

“É interessante pensar no trabalho de Gaby Amarantos e em vários grupos de dança, tecnobrega, no movimento das aparelhagens nesse lugar de futurismo, com naves espaciais, luzes de LED —e que é pouquíssimo conhecido no Sudeste", afirma.

“O sample [do tecnobrega], o roubo, estão num lugar político, já que não nos dão acesso nem dinheiro. O roubo é estratégia de sobrevivência estética e de recriação. Está no tecnobrega, nas aparelhagens, nas Themônias e em tudo que o Pará e a Amazônia produzem.”

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