Descrição de chapéu África

Cidade inteira virou uma zona de guerra, diz mulher que fugiu do Sudão

Dallia Mohamed Abdelmoniem deixou lembranças e pertences para trás e relata que capital foi tomada em 20 minutos

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São Paulo

A queda de Omar al Bashir, em 2019, deu a sensação de que sudaneses eram super-heróis, afirma Dallia Mohamed Abdelmoniem, 37. "Estávamos no topo do mundo. Tínhamos feito o impossível —derrotar um ditador que estava havia 30 anos no poder", diz a empreendedora, que participou dos atos naquele ano.

Dois anos depois, ela assistiu a um golpe de Estado em seu país e, há três semanas, viu o Sudão ficar à beira de uma guerra civil devido a combates entre dois grupos militares que disputam o poder.

Pessoas embarcam em aeronave durante resgate de britânicos do Sudão
Pessoas embarcam em aeronave durante resgate de britânicos do Sudão - 27.abr.23/Ministério da Defesa do Reino Unido via Reuters

Na capital Cartum, Abdelmoniem se viu isolada entre um hospital e outro edifício feitos de bases por uma das facções. Decidiu sair de seu país após um míssil cair em sua casa.

"Fui embora basicamente com um par de sapatos, meu passaporte, dinheiro, celular, carregador e mudas de roupas", afirma ela. A viagem começou no dia 20 de abril e terminou na última terça (2), quando chegou a Londres. "Deixamos a casa onde crescemos para trás."

O conflito entre os ex-aliados Fatah al-Burhan e Hemedti, líderes das Forças Armadas e das RSF (Forças de Apoio Rápido), respectivamente, começou no dia 15 de abril e já matou ao menos 550 pessoas.

Outras 4.926 estão feridas e ao menos 100 mil fugiram para nações vizinhas. Os que ficam enfrentam falta de água e energia, hospitais com escassez de suprimentos e ataques que não param —todas as tentativas de cessar-fogo até agora fracassaram. "Há milhões de pessoas que ainda não conseguiram deixar o país. Espero que os esforços diplomáticos e a pressão internacional tenham efeito", diz Abdelmoniem em depoimento à Folha. "Não queria ter deixado o Sudão, tive de deixar. O que estamos vivendo agora é temporário, mas no minuto em que eu puder voltar, volto."

Nasci e fui criada em Cartum. Mudei para o Cairo, no Egito, quando tinha 16 anos e vivi lá atuando como jornalista antes de voltar ao Sudão, em 2013. Quando cheguei, comecei um pequeno empreendimento —desde criança, sempre amei cozinhar, preparar bolos e sobremesas. Queria fazer algo que realmente amasse, e era isso: bolos de aniversário e de casamento. O negócio estava indo bem, e eu estava feliz, fazendo algo no meu país. Mas agora há algo em que precisamos focar e que toma todo o meu tempo.

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Dallia Mohamed Abdelmoniem, 37, sudanesa que saiu de seu país após conflitos entre duas facções militares e agora está em Londres - Arquivo pessoal

As relações entre as Forças Armadas e as RSF não estavam boas. Por alguns meses houve esforços diplomáticos para voltar a um governo civil, mas, aparentemente, os dois grupos não concordaram em certos pontos. Sabíamos que havia tensão, mas não esperávamos que as coisas fossem eclodir como naquele 15 de abril. Muitos pensavam que esperariam até o fim do Ramadã, mas eles não esperaram.

Apenas foram para a guerra.

Soube das notícias em casa. Precisava resolver algumas coisas e estava discutindo com a família os planos para o resto do dia, quando recebi a mensagem de um amigo com relatos de combates. Não demos muita atenção no início, mas em literalmente 20 minutos o conflito se espalhou para o resto da cidade. Todos que conhecemos começaram a mandar mensagens dizendo que havia batalhas nas ruas.

Quando falo isso, não me refiro somente a armas, mas também a bombas. A cidade inteira virou uma zona de guerra, especialmente onde eu vivia –entre o aeroporto e a sede do quartel.

Esses dois locais foram os focos dos combates. As RSF expulsaram os funcionários do hospital que fica atrás da nossa casa e ocuparam a construção vazia que estava na nossa frente. Estávamos entre os soldados. Ouvimos e sentimos cada artilharia, cada bomba. Do sábado até o dia em que saímos de nossa casa, na quinta-feira [dia 20], ninguém dormiu. Os dois lados têm muitas armas. Não estávamos preparados, mas eles estavam, sabiam que ia acontecer.

Ficamos trancados por cinco dias, até um míssil atingir um quarto do segundo andar, na quarta [dia 19] –estávamos no andar de baixo, ninguém se feriu, mas a casa poderia colapsar. Tivemos que fugir.

Um amigo me aconselhou a garantir que todas as crianças estivessem com os olhos cobertos antes de sair na rua para não verem corpos

Dallia Mohamed Abdelmoniem

empreendedora sudanesa

Primeiro fomos para uma casa segura, a do meu primo. Ele mora em Cartum, mas em um lugar um pouco mais distante, onde o conflito ainda não havia chegado. Mesmo assim, sabíamos que precisávamos ir embora, porque recebíamos relatos de que os combates estavam piorando cada vez mais.

Quando saímos de casa, vi que Cartum era uma cidade fantasma. Um amigo me aconselhou a garantir que todas as crianças estivessem com os olhos cobertos antes de sair na rua para não verem corpos.

Não há transporte público nem táxi. Tudo parou. Com dinheiro, é possível alugar um carro para sair da cidade. Alugamos um ônibus para 29 pessoas da minha família, entre as quais 12 crianças, e saímos de Cartum para Porto Sudão. Com o corte de internet, ficamos sem contato durante a viagem. Não podíamos nos informar sobre qual rota era segura. Tivemos que confiar no motorista para chegar com segurança.

Não sei quanto cobraram pelo nosso ônibus, estava cuidando de outras coisas, mas ouvi pessoas dizendo que haviam pago US$ 20 mil pelo aluguel. Demoramos 26 horas para chegar a Porto Sudão, um trajeto que normalmente seria de dez horas. Não queríamos encontrar nenhuma tropa ou soldado, então pegamos o caminho mais longo, para ter a certeza de que estaríamos seguros.

Ficamos uma semana em Porto Sudão na casa da minha irmã, tentando achar um jeito de sair, mas não conseguimos. Havia voos de resgate para sudaneses, mas era preciso pagar. Paguei US$ 1.000 por cada passagem para Londres, passando pelo Cairo. Chegamos aqui na terça-feira [2]. Desde então, só dormi.

A guerra é na capital, como se estivesse acontecendo em Brasília ou São Paulo

Dallia Mohamed Abdelmoniem

empreendedora sudanesa

Deixamos a casa onde crescemos para trás. O casamento dos meus irmãos foi lá. É a casa da minha família. Não consegui trazer meu gato. Parti com um par de sapatos, meu passaporte, dinheiro, celular, carregador e mudas de roupas. Não consegui pegar quase nada, deixei até o meu notebook.

A única coisa que conseguimos fazer foi embrulhar as obras de arte e as fotografias que tínhamos penduradas nas paredes e escondê-las. Espero que ainda estejam lá, porque são muito valiosas. São fotos de quando éramos crianças. Não queria ter deixado o Sudão, tive de deixar. O que estamos vivendo agora é temporário, mas no minuto em que eu puder voltar, volto.

Em 2019, estávamos no topo do mundo. Tínhamos feito o impossível —derrotar um ditador que estava no poder havia 30 anos. E fizemos isso pacificamente. Não paramos de protestar de 18 de dezembro de 2018 até 11 de abril do ano seguinte. Menos de dois anos depois, um golpe de estado, e, agora, esse conflito.

Temos que começar do zero de novo. A guerra é na capital, como se estivesse acontecendo em Brasília ou em São Paulo. É algo que as pessoas que vivem em Cartum nunca experimentaram. Um pesadelo.

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