Paramilitares alegam ter tomado locais estratégicos no Sudão; regime nega

Generais que se uniram para tomar poder do país africano em 2021 se enfrentam em confrontos que já deixaram ao menos 30 mortos

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Cartum | AFP e Reuters

Paramilitares do Sudão reivindicaram neste sábado (15) o controle do palácio presidencial, da TV estatal e de aeroportos em diversas cidades pelo território, incluindo a capital, Cartum.

O movimento, orquestrado pelo general Mohamed Hamdan Dagalo —mais conhecido como Hemedti— é, ao que tudo indica, uma nova tentativa de golpe, desta vez contra um regime que também assumiu o controle do país à força, em 2021.

Líderes do regime negam que os insurgentes tenham tomado o poder. No final do dia, o Exército lançou uma série de ataques aéreos sobre uma base das forças paramilitares em Omdurman, perto de Cartum, buscando reafirmar seu controle sobre o território.

Fumaça preta em região próxima do aeroporto de Cartum, na capital do Sudão
Fumaça preta em região próxima do aeroporto de Cartum, na capital do Sudão - AFP

O episódio se dá em um contexto de rivalidade crescente entre Hemedti, líder do grupo RSF (Forças de Apoio Rápido, em português), e o general que chefia o país africano desde a tomada de poder, Abdel Fatah al-Burhan.

Os dois haviam unido esforços para derrubar os civis no golpe de Estado há cerca de dois anos. Nos últimos meses, porém, vinham discordando sobre a participação do RSF nas Forças Armadas —embora o regime não rejeite a integração do grupo ao Exército, quer impor condições e limitar seu escopo de atuação.

As facções comandadas pelos dois generais ainda disputam a formação de um eventual governo de transição. Tensões entre as partes fizeram com que a assinatura de um acordo de passagem para a democracia apoiado pela comunidade internacional fosse adiada.

Rumores sobre um possível confronto circulavam nos últimos dias. No sábado, Cartum amanheceu sob a fumaça de explosões e o som de tiros de armas pesadas.

As versões sobre o início dos choques são, no entanto, conflitantes —enquanto o regime diz que os combates tiveram início quando integrantes do RSF atacaram suas bases em Cartum, a milícia afirma foi surpreendida com a chegada de um grande contingente de soldados em um de seus acampamentos em Soba, ao sul da capital, que a atacou com todo tipo de arma.

O RSF inicialmente anunciou a tomada de infraestruturas estratégicas na capital e em cidades como Merowe, ao norte, e El Obeid, a oeste — todos locais em que foram registrados confrontos entre o Estado e o RSF. A União dos Médicos do Sudão afirmou que ao menos 30 pessoas morreram em decorrência dos enfrentamentos. Não está claro se elas são civis.

Hemedti ameaçou Burhan em uma entrevista na TV, e chamou-o de criminoso e mentiroso. "Sabemos onde você está se escondendo e vamos pegá-lo e entregá-lo à Justiça, ou então você vai morrer como um animal qualquer", disse.

Já Burhan afirmou à emissora Al Jazeera que o RSF deveria recuar "se for esperto". Caso a situação se mantivesse, porém, as tropas do Exército sudanês seriam acionadas na capital e em outras áreas. No Facebook, o órgão afirmou que não negociaria com o RSF a não ser que eles desmobilizassem suas tropas.

Os conflitos provocaram pânico na população, e autoridades pediram aos civis que permaneçam em suas casas. O estado de Cartum declarou feriado no domingo (16), interrompendo o funcionamento de escolas, bancos e escritórios do governo.

Na capital, um jornalista da agência de notícias Reuters relatou ter visto canhões e veículos blindados posicionados em várias ruas da cidade, além de ter ouvido disparos com armas pesadas nos arredores do quartel-general do Exército. Médicos disseram que os confrontos ocorrem também em bairros residenciais.

Ataques também foram registrados nas proximidades da sede da TV estatal do Sudão, que veiculou imagens de um caça sobrevoando a cidade. Uma transmissão ao vivo da Sudan TV foi interrompida quando tiros foram ouvidos ao fundo.

"Como todos os sudaneses, estamos abrigados", escreveu nas redes sociais o embaixador dos Estados Unidos no Sudão, John Godfrey. "A escalada de tensões entre os militares, ao ponto do confronto direto, é extremamente perigosa. Apelo ao alto comando militar para que ponha fim imediato aos confrontos."

Líderes de potências internacionais pediram o fim das hostilidades. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, disse estar profundamente preocupado com a violência na nação africana. Ele lembrou que, no fim do ano passado, generais do regime e líderes de grupos pró-democracia assinaram um acordo que prevê a transição para um governo civil em até dois anos. "Mas existem outros atores que podem estar pressionando contra esse progresso", disse, sem entrar em detalhes.

Rival dos EUA no xadrez geopolítico, a Rússia também pediu cessar-fogo e informou ter reforçado a segurança da embaixada do país em Cartum. Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, e o representante especial da ONU no Sudão, Volker Perthes, também ecoaram pedidos pelo fim das hostilidades.

Em medida mais dura, o Chade anunciou o fechamento da fronteira com o país vizinho. Já a companhia aérea saudita Saudi Arabian anunciou a suspensão de voos no Sudão depois de ter relatado que um de seus aviões foi alvejado em Cartum. Medida semelhante foi adotada pela EgyptAir, do Egito, que anunciou a interrupção dos voos para a capital por ao menos 72 horas.

Em nota, o Itamaraty informou que o governo brasileiro acompanha com preocupação o desenrolar da situação. "Ao reiterar seu apoio às negociações políticas entre as lideranças sudanesas, com o objetivo de restabelecer governo civil de transição, o governo brasileiro exorta as partes à contenção e à cessação imediata dos combates."

Analistas dizem que o conflito pode agravar ainda mais a situação de crise humanitária no Sudão, um dos países mais pobres do mundo. Segundo a ONU, um terço dos 45 milhões de habitantes passam fome e ao menos três milhões de crianças com menos de cinco anos apresentam quadro de desnutrição severa.

A violência ainda tem obrigado milhares de pessoas a se deslocarem. As Forças de Apoio Rápido foram formadas a partir de milícias acusadas de crimes de guerra na região Darfur, em conflito entre milicianos e povos não árabes que já matou pelo menos 300 mil pessoas, segundo estimativas.

A crise se agravou em 25 de outubro de 2021, quando tropas lideradas por Burhan prenderam integrantes civis de um governo de transição e assumiram o comando do país, alegando buscar impedir a eclosão de uma guerra civil.

Inicialmente, os generais mantiveram Abdalla Hamdok, um civil e ex-funcionário da ONU, no cargo de primeiro-ministro, em uma tentativa de dar roupagem democrática ao movimento. Mas Hamdok renunciou no ano passado, em meio a intensas mobilizações nas ruas que pediam por democracia.

O golpe também frustrou a expectativa de alcançar um regime democrático depois que, em 2019, sudaneses conseguiram derrubar o ditador Omar al-Bashir, então há três décadas no poder.


O que é o RSF

O que são as Forças de Apoio Rápido do Sudão? O RSF (Forças de Apoio Rápido, em português) é um grupo paramilitar no Sudão comandado pelo general Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti. Analistas estimam que a organização tem em cerca de 100 mil soldados em todo o país.

Como o RSF surgiu? O grupo tem origem nas chamadas milícias janjaweed, acusadas de cometerem atrocidades na região de Darfur nos anos 2000. À época, soldados foram convocados pelo então ditador, Omar al-Bashir, a reprimir uma rebelião liderada por povos não árabes. Estima-se que 300 mil pessoas foram mortas no conflito.

Com o passar do tempo, o grupo cresceu e passou a ser usado como guarda de fronteira, principalmente para reprimir a migração irregular. Em 2017, foi aprovada uma lei que legitima o RSF como força de segurança independente.

Quais são as acusações contra o RSF? Ativistas e grupos de direitos humanos acusam as forças do RSF de envolvimento na morte de opositores. Também denunciam alguns dos seus soldados por violência tribal.

Já promotores do Tribunal Penal Internacional acusam comandantes janjaweed —alguns dos quais foram incorporados ao RSF— de genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade em Darfur.

Qual é a participação política do RSF no Sudão? Em abril de 2019, o RSF participou de um golpe militar que derrubou o ditador Bashir. Mais tarde, Hemedti assinou um acordo de compartilhamento de poder que o tornava membro de um conselho liderado pelo general do Exército Abdel Fattah al-Burhan.

Em outubro de 2021, o RSF participou do golpe de Estado que interrompeu a transição democrática no Sudão. Desde então, Hemedti diz que lamenta o golpe e vem defendendo a formalização de um novo acordo para, segundo ele, restaurar o governo civil pleno.

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